segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

"Torrente de Paixão" (Niagara, 1953)

 
    O cinema noir é uma paixão pessoal. No contexto de Hollywood das décadas de 1940 e 1950 são, em muitos casos, os filmes que extrapolaram os limites da censura do Código Hays. Eles apresentaram críticas à sociedade em questão e, ao mesmo tempo, encantaram visualmente e tem alguns dos personagens mais instigantes do período. Em sua maioria, os filmes são em preto e branco, mas existem casos de noir em cores, e esses dias finalmente assisti um desses títulos: “Torrente de Paixão” (Niagara, 1953) dirigido por Henry Hathaway, com Joseph Cotten, Marilyn Monroe e Jean Peters no elenco. Nenhum desses nomes é estranho ao noir, o que é só um dos elementos pelos quais esse filme chama a atenção.
É possível que quando se pense no noir do período em cores, o primeiro filme que venha à mente seja “Amar Foi Minha Ruína” (Leave Her to Heaven, 1945) dirigido por John Stahl. E existem motivos de sobra para isso. O filme tem no elenco nomes como Cornel Wilde, Vincent Price e a Gene Tierney interpretando uma das mais cruéis femme fatale do cinema. No panteão de vilões e vilãs do cinema noir, Gene Tierney em “Amar Foi Minha Ruína” e Richard Widmark em “Beijo da Morte” (Kiss of Death, 1947) estão lado a lado. 
No filme de Stahl, o diretor explora narrativamente as cores (e também as paisagens). E referente a isso pensei na afirmação de Martin Scorsese em “Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano”, quando lembra que os filmes em cor normalmente eram musicais ou histórias de época, dificilmente aparecendo em histórias contemporâneas. Ele afirmou: “A direção de John Stahl e a fotografia de Leon Shamroy deram vida a uma perturbadora visão super-realista. Era um paraíso perdido, com sua beleza maculada pela natureza perversa da heroína”. Entendo que essa afirmação pode ajudar a pensar sobre “Torrente de Paixões”, também em technicolor. No entanto, neste caso, entendo que não se trata apenas de uma personagem perversa, mas sim da maneira como a relação do casal formado por Monroe e Cotten se apresenta, além da natureza possessiva do sentimento de um marido por sua esposa. 
 O filme explora o esplendor da paisagem das cataratas de Niágara, as cores vibrantes, que também estão representadas pelos figurinos (destaque especialmente para os de Marilyn Monroe), contando essa história de obsessão e violência. Entendo que o filme relaciona a força da natureza, representada pela queda d’água das cataratas, com os sentimentos do protagonista pela mulher, e esse elemento está presente de alguma maneira em diálogos e é reforçado visualmente ao longo do filme. Ao mesmo tempo, o filme parece relacionar a beleza da paisagem (unida ao seu perigo) como uma expressão simbólica perfeita de como Rose mudou completamente a vida de George (a partir da visão dele).
A história possui quatro personagens principais que formam dois casais, Cotten e Monroe, interpretando George e Rose Loomis, e Max Showalter e Jean Peters, interpretando Ray e Polly Cutler. Os dois casais se encontram por acaso em uma pousada do lado canadense com vista para as cataratas, na qual George e Rose já estão hospedados e Ray e Polly chegam para um breve período. Logo de início é possível notar como são casais com relações muito diferentes.
       A primeira sequência do filme abre com uma imagem aérea das cataratas. Segundos depois a câmera focaliza a área próxima da queda d'água e vemos um homem caminhando, enquanto aproxima-se da queda d'água, o homem (que é o protagonista) é apresentado na imagem como minúsculo diante da paisagem e essa ideia é reforçada por um pensamento do personagem. A voz dele rompe com o som das cataratas que marcam esses primeiros segundos. Logo ele retorna para o quarto na pousada, onde sua esposa finge dormir. A cena corta para Ray e Polly cruzando a fronteira dos Estados Unidos para o Canadá em direção à pousada. Eles estão indo para lá motivados por uma proposta de emprego para Ray, mas em suas conversas falam sobre aproveitar o lugar e sua beleza natural. Ao chegar no local, a cabana reservada está sendo utilizada por George e Rose, que ainda não saíram da habitação. 
Em relação ao elenco fica difícil não destacar Joseph Cotten e Marilyn Monroe, ainda em início de carreira. Joseph Cotten teve uma incursão intensa em histórias sombrias, colocadas no cânone do noir ou como influências. Dentre essas é possível citar “Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, “A Sombra de Uma Dúvida” (Shadow of a Doubt, 1942), de Alfred Hitchcock, e o “O Terceiro Homem” (The Third Man, 1948), de Carol Reed. Dos filmes que assisti com ele, nunca vi uma versão de Cotten tão sombria e vulnerável ao mesmo tempo como em "Torrente de Paixão".
        No caso de Marilyn Monroe, ela estava em outro momento da carreira. Foi na década de 1950 que se tornou uma das maiores estrelas de Hollywood. Ela fez duas pequenas participações em grandes filmes do ano 1950 como “A Malvada” (All About Eve) e “O Segredo das Joias” (The Asphalt Jungle), e aos poucos foi ganhando protagonismo em vários filmes tornando-se um dos principais nomes do período em Hollywood. Normalmente ela é lembrada por filmes de comédia ou musical, como os que fez com Billy Wilder, “O Pecado Mora ao Lado” (The Seven Year Itch, 1955) e “Quanto Mais Quente Melhor” (Some Like It Hot, 1959), e “Os Homens Preferem as Loiras” (Gentleman Prefer Blondes, 1953), dirigido por Howard Hawks. No entanto, Monroe teve uma incursão por histórias mais sombrias que vale ser ressaltada.
Para Jake Hinkson, em texto escrito para a revista Noir City, antes de Monroe ser a estrela que conhecemos hoje, ela fez vários filmes de crime e drama nos quais a sua sexualidade era apresentada como fonte de perigo. Em filmes como o já mencionado de John Huston, “Só a Mulher Peca” (Clash by Night, 1952), de Fritz Lang, e “Almas Desesperadas” (Don’t Bother to Knock, 1952), de Roy Ward Baker, no qual era a protagonista. Segundo Hinkson, foi a atuação em “Almas Desesperadas” que fez a 20th Century Fox ficar impressionada com a atriz e os convenceu a chamá-la para fazer “Torrente de Paixão”. Ainda não assisti o filme de Lang nem o de Baker, mas é possível afirmar que no de Hathaway essa representação da sexualidade como fonte de perigo, comum na construção da personagem femme fatale, está presente. No entanto, me parece que essa maneira de representar Monroe está presente em outros filmes também.
Muito do que mencionei está presente na forma como o filme foi divulgado. Por isso vale a pena conferir um dos trailers que encontrei no YouTube (infelizmente sem legenda em português):


“Torrente de Paixões” explora temas e personagens comuns no noir, como a obsessão que leva ao crime (seja de forma efetivada ou a intenção de cometer um ato criminoso), a masculinidade frustrada e a femme fatale (para Jake Hinkson, Rose Loomis foi única femme fatale que Monroe interpretou ao longo da carreira). O filme tem como um dos produtores e roteiristas Charles Brackett, que trabalhou algumas vezes em filmes que Billy Wilder dirigiu, “Farrapo Humano” (The Lost Week-end, 1945) e “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard, 1950), e também escreveu junto com Wilder o roteiro de “Bola de Fogo” (Ball of Fire, 1941) de Hawks.
Destaco essa relação, pois um elemento em especial me fez pensar em outro filme de Wilder, “Pacto de Sangue” (Double Indemnity. 1944), do qual não teve participação. Já que desde o início ficamos sabendo que a esposa está arquitetando o assassinato do marido com o amante. No entanto, no caso do filme de Hathaway, não existe possível compensação financeira, o desejo dela é fugir da relação com outro homem. Como parte do plano, Rose faz o possível para mostrar para o outro casal que seu marido é violento (o que não é mentira, como o filme nos mostra).
          O personagem de Joseph Cotten também é comum ao noir. Veterano de guerra, frustrado com sua vida civil, e casado com uma bela mulher por quem se apaixonou. Lembrei do filme “Tensão” (Tension, 1949), dirigido por John Berry, no qual também apresenta um veterano de guerra casado com uma bela mulher (Audrey Totter) e que tem seus desejos de família tradicional frustrados no momento em que ela nunca aceita se conformar com esse papel. Em muitos filmes noir o desejo pela família tradicional é inatingível.
Em “Torrente de Paixões” esses elementos não são tão diretos como em “Tensão”, mas ao mostrar o personagem de Cotten tomado por ciúmes e infelicidade pelas ações de sua esposa, me parece que de alguma forma eles estão presentes. Como é comum nesses filmes, há um conflito entre o que o homem e a mulher desejam da relação e o que desejam para suas respectivas vidas, e normalmente são coisas bem distintas.  Existe uma leitura recorrente que essa personagem da femme fatale é aquela que destrói a vida do homem, mas acredito que é interessante discutir essa dinâmica pelo viés das escolhas desses personagens homens ao longo da história, não somente em tentar conformar a mulher a um certo papel, mas também ao escolher o ato da violência como uma alternativa quando sua expectativa não é correspondida.
        O filme noir é fascinante pelos personagens e situações complexas, contando histórias muito humanas. São filmes que dialogam perfeitamente com um mundo de expectativas frustradas que foram os anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, personagens em conflito com o desejo por viver o Sonho Americano (nesse período, uma casa, família, emprego e filhos seria considerado um exemplo desse sonho) e a vida mostrando que esse sonho é inalcançável, ou possivelmente uma grande mentira. Sempre importante lembrar que foram duas décadas de inúmeros filmes diferentes, com propostas e diretores variados, e nem todos se aplicam ao que acabei de afirmar.  


Referências: 

Marilyn Noir: The Dark Roots of Hollywood’s Blonde Bombshell - Jake Hinkson (Noir City, número 23, 2018)

Uma Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano – Martin Scorsese (edição lançada em 2004 pela Cosac&Naify, Trad: José Geraldo Couto)

Sobre a história e carreira da Marilyn Monroe recomendo os episódios 98, 99 e 100 do podcast (em inglês) You Must Remember This



Princess Cyd (Stephen Cone, 2017)