O diretor Stephen Cone é um cineasta que conheci durante a pandemia através da Mubi, quando o streaming colocou três filmes dele no catálogo: The Wise Kids (2011), Henry Gamble’s Birthday Party (2015) e Princess Cyd (2017). Os três são coming of age, histórias sobre crescimento, mudanças, em um período específico da vida, a adolescência. Todas as histórias envolvem discussões sobre queerness e relações queer. Todos os protagonistas dos filmes estão vivendo questões importantes, mudanças, descobertas, e em todos os casos a sexualidade é um dos elementos importantes na vida desses protagonistas.
Os dois primeiros filmes mencionados se
passam na Carolina do Sul, onde Cone passou sua infância, sendo filho de um
pastor e convivendo no meio evangélico, e ambos refletem esse contexto. Como
afirmou em uma entrevista, e é notório em seus filmes, o diretor representa
esse universo religioso de forma complexa e repleto de nuances. Já Princess
Cyd é um filme que se passa em Chicago, onde atualmente o diretor reside. Os
três filmes me encantaram de modo diferente, mas em geral, gosto como Cone filma
seus protagonistas, como ilumina utilizando uma luz quente, e como trata
assuntos muito sérios de forma delicada. A questão da luz nos filmes citados
chamou a minha atenção, principalmente, por ter assistido os três em maratona,
e isso me fez notar algumas similaridades. Anos depois me deparei com uma
entrevista do diretor para a Criterion, na qual ele fala sobre filmar no verão e utilizar a estação e
suas luzes para contar suas histórias. Fez muito sentido para mim, não só pelo
contexto no qual se passam as histórias, mas também, pela questão sensorial.
Dos três, Princess Cyd é o filme
que mais gostei e mais assisti, foram quatro vezes. E gostaria de, aqui neste
espaço, colocar em palavras os motivos pelos quais esse é um dos meus filmes queer
preferidos dos últimos tempos. Considero que ele seja significativo por questões
pessoais, mas também por me fazer pensar em coisas novas a cada vez que
assisto. Quando se fala em filmes preferidos não me refiro necessariamente a
qualidades formais, no entanto, considero Princess Cyd um excelente
filme no que se propõe: roteiro bem escrito, elenco excelente, ótimos
personagens e bem filmado.
Acredito que Princess Cyd é o tipo de filme que teve um efeito em mim similar a
“Encontros e Desencontros” (Lost in Translation), da Sofia Coppola,
muitos anos atrás, quando ainda era uma adolescente. Gosto das histórias, dos
personagens, da trilha sonora, da maneira como é filmado, mas existe algo a mais,
na maneira como as pessoas e as relações são apresentadas. E as respostas que
encontram (não definitivas, pois isso não existe) para as dinâmicas de tais
relações e certos obstáculos enfrentados pelas personagens.
Ambos são filmes que fizeram muito sentido para mim na época em que
assisti (e a minha relação com o filme da Coppola já é longeva), e continuam ressoando
com questões diferentes, não só me fazendo pensar no filme em si, mas nos
motivos que fazem deles obras tão especiais para mim.
Princess Cyd
inicia com uma tela preta em que só é possível escutar o som de uma ligação
para a polícia. Vizinhos de uma casa escutaram tiros que deixaram vítimas
fatais, e quando a operadora do telefone pergunta se tem alguém mais na casa,
ele responde que somente uma menina. Com essa fala, a imagem abre para uma
jovem adolescente, a protagonista da história, nove anos depois. Com essa cena,
sabemos que a jovem Cyd (Jessie Pinnick), de 16 anos, presenciou algum evento
traumático, que somente saberemos os detalhes mais para o final do filme.
A história envolve a relação da Cyd com
sua tia Miranda (Rebecca Spence), irmã de sua mãe falecida, depois de anos sem
se verem. No início do filme o pai de Cyd, liga para a Miranda, dizendo que sua
relação com a filha está um pouco estremecida, e pede para Cyd ficar um tempo em
sua casa, em Chicago, já que sua filha estaria considerando a cidade como
possibilidade para universidade. Então, Cyd sai da Carolina do Sul, onde mora com
o pai, e vai para Chicago passar algumas semanas com a tia. O filme foca nesse
período, na relação entre as duas, e nas descobertas pessoais da própria
protagonista e da tia. Mesmo que o foco seja a jovem, é muito interessante como
esse momento retratado no filme é uma jornada das duas, individualmente e da relação
entre elas.
Em
uma entrevista, Stephen Cone descreve Princess Cyd como uma “carta de
amor para Chicago” e tive essa impressão da relação do diretor com a cidade.
Pela maneira que ele explora as paisagens e os lugares que os personagens
frequentam, utilizando a mesma luz quente, representando a cidade como um
espaço acolhedor. No caso, referente à história que ele está contando,
acolhedor aos diversos personagens (e à diversidade) do filme. Entre
restaurantes, cafés, feiras em bairros e praia, Chicago é uma cidade que trata
bem os diversos personagens em cena.
Miranda Ruth, a tia de Cyd, é uma
escritora e intelectual, que não vê sua sobrinha há muitos anos. E o
estranhamento entre elas fica estabelecido logo no início, quando Miranda
apresenta o quarto onde Cyd irá ficar, o quarto que teria sido de sua mãe, e
menciona que é um ótimo lugar para a leitura. Logo, a sobrinha responde que não
gosta de ler e pede a senha do wifi. A
cena tem um detalhe engraçado, já que a senha da internet faz referência ao
escritor Nathaniel Hawthorne, sobre quem Miranda fala de forma empolgada, enquanto
sua sobrinha parece não se importar muito.
Numa parcela do filme, o tom da
conversa entre as duas é um pouco assim. Existe um esforço de conversa, mas o
estranhamento toma um espaço maior entre os diálogos. Nesse sentido, gosto de como
Stephen Cone apresenta isso através do enquadramento de ambas, como, por
exemplo, na primeira refeição, com a câmera afastada e as duas no fundo do
quadro. Na medida em que as duas vão se aproximando, isso se reflete na forma como
elas são apresentadas no quadro, as duas juntas, conversando e interagindo.
Outra questão é que a aproximação
não se refere a interesses mútuos por alguma coisa. Mas sim, a relação entre as
duas se desenvolve na medida em que se estabelece um respeito mútuo,
principalmente por parte de Cyd, que como adolescente às vezes se coloca diante
de questões da vida sem muito espaço para nuances. Nesse sentido, destaco também
as atuações. Jessie Pinnick interpreta uma adolescente que aparentemente não
está muito interessada em escutar, sendo assim, ela fala muito, fazendo
inclusive várias perguntas para a tia, mas normalmente interrompe a fala de
Miranda sem a deixar responder. Por outro lado, Miranda apresenta suas falas de
forma mais tranquila, pensando ao elaborar suas respostas para a sobrinha, mas
até uma parte do filme é pouco ouvida.
Essa dinâmica vai se modificando ao
longo do filme até o meio em que tem uma cena (para mim, a melhor do filme) na
qual finalmente Cyd escuta sua tia e não a interrompe. É uma cena central, em
que Cyd conhece vários amigos da tia, que vão em sua casa para ler textos,
conversar, comer, compartilhar um amor pela troca literária e intelectual com
outras pessoas. Ao final, Cyd se coloca de forma muito direta sobre o que ela
entende da vida da tia e elas tem um diálogo muito honesto, que entendo como o momento
de virada na relação das duas, quando efetivamente a ligação entre tia e
sobrinha se concretiza.
Gosto como o filme representa essa adolescente
um pouco intransigente, que enxerga o mundo de uma maneira muito simplista,
ingênua por vezes. Sua viagem à Chicago é um momento importante de
amadurecimento, de conhecer pessoas com vidas diferentes da sua, inclusive, sua
própria tia. Também acho importante que o filme apresenta como a sobrinha
impacta a vida pessoal da tia, fazendo-a repensar sobre algumas questões, e
suas vidas serão melhores depois desse encontro. A ida de Cyd à Chicago foi importante para
além de pensar em um possível futuro no qual estudaria em uma universidade da
cidade. Mas sim, para desfazer algumas certezas do presente, em relação à sua
sexualidade, relacionando-se com a personagem Katie (Malic White) no período em que esteve na cidade e também a sua história de família, desenvolvendo uma
relação nova com sua tia.
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