domingo, 31 de dezembro de 2023

Princess Cyd (Stephen Cone, 2017)

O diretor Stephen Cone é um cineasta que conheci durante a pandemia através da Mubi, quando o streaming colocou três filmes dele no catálogo: The Wise Kids (2011), Henry Gamble’s Birthday Party (2015) e Princess Cyd (2017). Os três são coming of age, histórias sobre crescimento, mudanças, em um período específico da vida, a adolescência. Todas as histórias envolvem discussões sobre queerness e relações queer. Todos os protagonistas dos filmes estão vivendo questões importantes, mudanças, descobertas, e em todos os casos a sexualidade é um dos elementos importantes na vida desses protagonistas. 

Os dois primeiros filmes mencionados se passam na Carolina do Sul, onde Cone passou sua infância, sendo filho de um pastor e convivendo no meio evangélico, e ambos refletem esse contexto. Como afirmou em uma entrevista, e é notório em seus filmes, o diretor representa esse universo religioso de forma complexa e repleto de nuances. Já Princess Cyd é um filme que se passa em Chicago, onde atualmente o diretor reside. Os três filmes me encantaram de modo diferente, mas em geral, gosto como Cone filma seus protagonistas, como ilumina utilizando uma luz quente, e como trata assuntos muito sérios de forma delicada. A questão da luz nos filmes citados chamou a minha atenção, principalmente, por ter assistido os três em maratona, e isso me fez notar algumas similaridades. Anos depois me deparei com uma entrevista do diretor para a Criterion, na qual ele fala sobre filmar no verão e utilizar a estação e suas luzes para contar suas histórias. Fez muito sentido para mim, não só pelo contexto no qual se passam as histórias, mas também, pela questão sensorial.
Dos três, Princess Cyd é o filme que mais gostei e mais assisti, foram quatro vezes. E gostaria de, aqui neste espaço, colocar em palavras os motivos pelos quais esse é um dos meus filmes queer preferidos dos últimos tempos. Considero que ele seja significativo por questões pessoais, mas também por me fazer pensar em coisas novas a cada vez que assisto. Quando se fala em filmes preferidos não me refiro necessariamente a qualidades formais, no entanto, considero Princess Cyd um excelente filme no que se propõe: roteiro bem escrito, elenco excelente, ótimos personagens e bem filmado.
Acredito que Princess Cyd é o tipo de filme que teve um efeito em mim similar a “Encontros e Desencontros” (Lost in Translation), da Sofia Coppola, muitos anos atrás, quando ainda era uma adolescente. Gosto das histórias, dos personagens, da trilha sonora, da maneira como é filmado, mas existe algo a mais, na maneira como as pessoas e as relações são apresentadas. E as respostas que encontram (não definitivas, pois isso não existe) para as dinâmicas de tais relações e certos obstáculos enfrentados pelas personagens.  Ambos são filmes que fizeram muito sentido para mim na época em que assisti (e a minha relação com o filme da Coppola já é longeva), e continuam ressoando com questões diferentes, não só me fazendo pensar no filme em si, mas nos motivos que fazem deles obras tão especiais para mim.
Princess Cyd inicia com uma tela preta em que só é possível escutar o som de uma ligação para a polícia. Vizinhos de uma casa escutaram tiros que deixaram vítimas fatais, e quando a operadora do telefone pergunta se tem alguém mais na casa, ele responde que somente uma menina. Com essa fala, a imagem abre para uma jovem adolescente, a protagonista da história, nove anos depois. Com essa cena, sabemos que a jovem Cyd (Jessie Pinnick), de 16 anos, presenciou algum evento traumático, que somente saberemos os detalhes mais para o final do filme.
A história envolve a relação da Cyd com sua tia Miranda (Rebecca Spence), irmã de sua mãe falecida, depois de anos sem se verem. No início do filme o pai de Cyd, liga para a Miranda, dizendo que sua relação com a filha está um pouco estremecida, e pede para Cyd ficar um tempo em sua casa, em Chicago, já que sua filha estaria considerando a cidade como possibilidade para universidade. Então, Cyd sai da Carolina do Sul, onde mora com o pai, e vai para Chicago passar algumas semanas com a tia. O filme foca nesse período, na relação entre as duas, e nas descobertas pessoais da própria protagonista e da tia. Mesmo que o foco seja a jovem, é muito interessante como esse momento retratado no filme é uma jornada das duas, individualmente e da relação entre elas.  
        Em uma entrevista, Stephen Cone descreve Princess Cyd como uma “carta de amor para Chicago” e tive essa impressão da relação do diretor com a cidade. Pela maneira que ele explora as paisagens e os lugares que os personagens frequentam, utilizando a mesma luz quente, representando a cidade como um espaço acolhedor. No caso, referente à história que ele está contando, acolhedor aos diversos personagens (e à diversidade) do filme. Entre restaurantes, cafés, feiras em bairros e praia, Chicago é uma cidade que trata bem os diversos personagens em cena.
Miranda Ruth, a tia de Cyd, é uma escritora e intelectual, que não vê sua sobrinha há muitos anos. E o estranhamento entre elas fica estabelecido logo no início, quando Miranda apresenta o quarto onde Cyd irá ficar, o quarto que teria sido de sua mãe, e menciona que é um ótimo lugar para a leitura. Logo, a sobrinha responde que não gosta de ler e pede a senha do wifi. A cena tem um detalhe engraçado, já que a senha da internet faz referência ao escritor Nathaniel Hawthorne, sobre quem Miranda fala de forma empolgada, enquanto sua sobrinha parece não se importar muito.
            Numa parcela do filme, o tom da conversa entre as duas é um pouco assim. Existe um esforço de conversa, mas o estranhamento toma um espaço maior entre os diálogos. Nesse sentido, gosto de como Stephen Cone apresenta isso através do enquadramento de ambas, como, por exemplo, na primeira refeição, com a câmera afastada e as duas no fundo do quadro. Na medida em que as duas vão se aproximando, isso se reflete na forma como elas são apresentadas no quadro, as duas juntas, conversando e interagindo.
            Outra questão é que a aproximação não se refere a interesses mútuos por alguma coisa. Mas sim, a relação entre as duas se desenvolve na medida em que se estabelece um respeito mútuo, principalmente por parte de Cyd, que como adolescente às vezes se coloca diante de questões da vida sem muito espaço para nuances. Nesse sentido, destaco também as atuações. Jessie Pinnick interpreta uma adolescente que aparentemente não está muito interessada em escutar, sendo assim, ela fala muito, fazendo inclusive várias perguntas para a tia, mas normalmente interrompe a fala de Miranda sem a deixar responder. Por outro lado, Miranda apresenta suas falas de forma mais tranquila, pensando ao elaborar suas respostas para a sobrinha, mas até uma parte do filme é pouco ouvida.
           Essa dinâmica vai se modificando ao longo do filme até o meio em que tem uma cena (para mim, a melhor do filme) na qual finalmente Cyd escuta sua tia e não a interrompe. É uma cena central, em que Cyd conhece vários amigos da tia, que vão em sua casa para ler textos, conversar, comer, compartilhar um amor pela troca literária e intelectual com outras pessoas. Ao final, Cyd se coloca de forma muito direta sobre o que ela entende da vida da tia e elas tem um diálogo muito honesto, que entendo como o momento de virada na relação das duas, quando efetivamente a ligação entre tia e sobrinha se concretiza.
Gosto como o filme representa essa adolescente um pouco intransigente, que enxerga o mundo de uma maneira muito simplista, ingênua por vezes. Sua viagem à Chicago é um momento importante de amadurecimento, de conhecer pessoas com vidas diferentes da sua, inclusive, sua própria tia. Também acho importante que o filme apresenta como a sobrinha impacta a vida pessoal da tia, fazendo-a repensar sobre algumas questões, e suas vidas serão melhores depois desse encontro. A ida de Cyd à Chicago foi importante para além de pensar em um possível futuro no qual estudaria em uma universidade da cidade. Mas sim, para desfazer algumas certezas do presente, em relação à sua sexualidade, relacionando-se com a personagem Katie (Malic White) no período em que esteve na cidade e também a sua história de família, desenvolvendo uma relação nova com sua tia.

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Princess Cyd (Stephen Cone, 2017)