Há
algum tempo tenho uma relação ambígua com o cineasta espanhol Pedro Almodóvar. O
filme que me fez repensar a relação com as suas obras foi “Amantes Passageiros”
(Los Amantes Pasajeros, 2013). Não gostei do filme, do tipo de humor,
especificamente de alguns momentos construídos como cômicos e que entendo como
ofensivos. É claro que podemos assistir algum filme de um cineasta favorito,
não gostar, e continuar admirando-o. No meu caso, nem se trata de não admirar,
o seu potencial como contador de histórias e criador de mundos é inquestionável,
mas me refiro mais ao sentido de que determinado cineasta não fala mais tão
diretamente a pessoa que você é no momento. Acredito que isso faz parte do
desenvolvimento processual de quem se é. Alguns diretores e diretoras continuam
com você por toda a vida, outros serão marcantes apenas em alguns momentos
específicos, mesmo que você continue apreciando seu trabalho ao longo da vida.
Muitos
dos filmes de Almodóvar que marcaram minha adolescência e o início da vida
adulta eu não reassisti, e algum dia pretendo fazê-lo. Dos seus últimos filmes,
“Dor e Glória” (Dolor y Gloria, 2019) é um dos meus preferidos. Tudo
isso para dizer que assisti sua última produção, o curta Strange Way of Life
e não gostei.
Fiquei
pensando se era uma questão do estilo não me agradar ou por algumas coisas
realmente não funcionaram para mim. Nesse sentido, inicialmente gostaria de
descartar a questão do estilo. Almodóvar sabe filmar e transmitir emoções
através das imagens, sempre gostei do modo como utiliza as cores, cria seus personagens,
e tudo isso continua me encantando. Na verdade, o que realmente me incomodou no
filme foi o roteiro e as atuações.
O
curta Strange Way of Life é um western que retrata o reencontro
de dois ex amantes após vinte e cinco anos separados, o pistoleiro Silva (Pedro
Pascal) e o xerife e ex pistoleiro Jake (Ethan Hawke). O filme estreou no
Festival de Cannes desse ano e concorreu a melhor curta no prêmio Queer Palm.
Foi produzido pela Saint Laurent Productions e foi o segundo filme realizado
originalmente em inglês pelo cineasta. Pouco nos é contado sobre os personagens,
Silva e Jake no momento em que se conheceram viviam uma vida de foras-da-lei e
anos depois Jake mudou sua vida e se tornou xerife. O personagem interpretado
por Hawke apresenta aquela mudança como definidora de quem ele é e nada poderá
comprometer aquela decisão, nem mesmo seu possível amor por Silva. No decorrer
da história, essa firmeza em suas decisões é testada.
O
filme começa ao som de “Estranha Forma de Vida”, na voz de Caetano Velloso,
alguém que não é estranho às trilhas de Almodóvar. A imagem abre em um típico
plano aberto de western em uma paisagem desértica, com o personagem de
Pascal galopando até a cidade onde encontrará Jake. Quando chega à cidade, o
ator espanhol Manu Ríos (que faz lip sync da música) está com um violão
e cantando, recebendo o personagem na cidade. A música, além estabelecer uma
atmosfera para o futuro encontro, já anuncia de uma certa forma ao que aqueles
dois personagens estão fadados. Talvez seja uma das minhas cenas preferidas do
curta.
Nas
primeiras cenas em que Jake aparece, ficamos sabendo da morte de alguém e que
existe um suspeito na cidade, um suspeito que na metade do curta é nomeado como
o filho de Silva. No momento em que Jake e Silva se reencontram, o filme
desenrola para nos mostrar que o amor/desejo que foi deixado de lado por anos
ainda está presente, e que aparentemente Jake reprimiu essas memórias. O curta
não me convenceu da relação, por talvez pela falta de química entre os atores. A
dinâmica das cenas entre os dois, o modo como são enquadrados, me transmitiu
uma certa artificialidade que não condiz com os sentimentos demostrados através
dos diálogos. Se fosse destacar um elemento positivo, seria a construção do cenário,
especialmente a casa do Jake (e posteriormente a casa do filho de Silva) e,
nesse sentido, vale prestar atenção nos quadros pendurados nas paredes.
Quando Jake suspeita do real motivo do retorno de Silva, o de defender seu filho, eles se separam e cada um vai à procura do suspeito de matar a esposa do irmão do xerife. Nessa cena, acontece um flashback, de provavelmente vinte e cinco anos atrás, quando os dois ainda eram pistoleiros. Se você for na página do filme no IMDB encontrará a indicações de vários westerns a que Almodóvar teria feito referência e teria se inspirado, porém, a cena do flashback me fez pensar diretamente em uma famosa cena de “Rio Vermelho” (Red River, 1948), de Howard Hawks.
No documentário The Celluloid Closet, baseado no estudo clássico de Vito Russo, sobre as representações queer no cinema estadunidense, da primeira metade do século XX, uma das cenas destacadas é a do filme de Hawks, entre os personagens interpretados por Montgomery Clift e John Ireland. Na cena, os dois personagens comparam suas armas, um pegando na arma do outro e depois atirando em uma lata de metal. Essa é a descrição literal da cena, e em 1948 nada poderia acontecer além disso, mas as leituras de subtexto são possíveis. Quando assisti o curta de Almodóvar, a cena do flashback me pareceu essa cena e o que ela poderia ter sido se não fosse de um filme de 1948, sob a censura do Código Hays.
Além
das atuações, o roteiro também foi um destaque negativo para mim.
Primeiramente, eu não gostei de vários diálogos, principalmente da primeira
cena entre os dois personagens, no início do curta. Mas o que realmente me
incomodou foi o excesso de conflitos entre os personagens e o pouco tempo para
desenvolvê-los. Admito que em Madres Paralelas, seu filme de 2021,
também senti o mesmo tipo de incomodo e, nesse caso, estamos falando de um
longa. O que me faz pensar que, no momento que resolver rever a filmografia de Almodóvar,
vou prestar atenção no modo como ele constrói seus roteiros, mas, nesse
momento, só posso falar sobre o que a minha memória permite.
Tudo
que envolveu o filho de Silva no filme me pareceu deslocado com a história do
curta. Somente o reencontro deles, todos os anos de separação, mais anos de sentimentos
reprimidos, me parecia uma história e tanto para ser contada (e todos esses
elementos estão ali). No fim, sabemos pouco sobre tudo isso. Inclusive, a
própria cena do flashback, e quando
ocorre, me pareceu estranha. Com a informação que temos a partir de um diálogo,
o filho de Silva está na cidade de Jake, e por isso, não entendi aquele longo
deslocamento a cavalo, com a necessidade de uma noite no deserto, para
justificar a existência do flashback. Aliás, se você deseja tanto avisar
seu filho que ele será preso, e sabe que está sendo seguido, por que parar e
dormir para dar tempo àquele que te segue?
Eu fiquei querendo saber mais sobre os personagens, mas não por querer um longa-metragem, sim, por que se a história deles tivesse sido o foco, os trinta minutos seriam suficientes. Admito que fiquei decepcionada. Acredito que há muitas histórias que podem ser contadas sobre as vivências queer e marginais nos filmes de western, seja em filmes que se passam no século passado ou no contexto contemporâneo, já que o gênero ainda é utilizado para contar o mesmo tipo de histórias com os mesmos tipos de personagens, embora com algumas mudanças. Creio que as explorações do gênero por Kelly Reichardt em “O Atalho” (Meek’s Cutoff, 2010) e First Cow (2019), Chloe Zao em “Domando o Destino” (The Rider, 2017) e Jane Campeon, em “Ataque dos Cães” (The Power of the Dog, 2021), contribuíram recentemente para ressignificar um espaço narrativo muito dominado por histórias que reafirmam não só um ideal de virilidade heteronormativa, mas também colonial. O gênero se beneficiaria com explorações mais diversificadas, inclusive para trazer e incluir debates que já acontecem em discussões/estudos sobre o passado colonial estadunidense.
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