Quando
eu estava na escola, no início dos anos 2000, eu tinha por costume levar uma
câmera fotográfica no final do ano para a escola e fotografar amigas e a turma.
Registros que ainda tenho e posso ter acesso sempre que quiser. Como parte de
uma geração que vivenciou muitas mudanças tecnológicas, eu passei por um
momento quando a máquina fotográfica analógica foi deixada na gaveta e substituída
pela digital. Depois de anos notei uma consequência direta da mudança na minha
prática do uso da câmera, pois eu deixei de manter esse ritual anual e, em
consequência, não tenho registros de várias etapas e pessoas que passaram pela
minha vida. Devido a isso, anos depois decidi imprimir algumas fotos de viagens
e conservá-las em álbum. A máquina digital, e agora o celular, nos permitem
tirar um número maior de fotografias, ainda mais se consideramos o valor
financeiro do filme analógico. Porém, a relação que estabelecemos com as fotos
em um álbum para com as fotos no HD me parecem muito diferente. E ainda devemos
considerar que a possibilidade de perda dos arquivos é maior no campo digital.
Essas
reflexões e lembranças se deram depois de assistir o curta brasileiro “A Festa
e os Cães”, um filme-ensaio autobiográfico do diretor Leonardo Mouramateus. Um
dos filmes mais instigantes que assisti esse ano, não somente pelos temas que
me tocaram pessoalmente, mas também pela maneira escolhida pelo diretor para
contar a sua história.
O
curta tem aproximadamente 25 minutos e durante quase todo esse tempo, no qual o
próprio diretor rememora momentos com amigos, ele apresenta a narrativa através
de fotografias. “Prevalece no filme, portanto, a paralisação e o congelamento
da imagem fotográfica; em detrimento do movimento da imagem de cinema” (Almeida,
2017, s/p). Como afirmou Almeida, a sensação de movimento se dá com a troca das
imagens e não com o movimento de câmera (como costumeiramente vemos nos filmes).
A troca de fotografias é complementada com os relatos dos encontros e
desencontros, amizades, festas e despedidas de um grupo de amigos em Fortaleza.
Durante os quase 25 minutos, a câmera fica parada em uma posição fixa na medida em que fotografias são apresentadas na frente do espectador. Essas fotografias, junto com uma narração, constroem a narrativa do protagonista (o próprio diretor), seus amigos e a relação com a cidade em que moravam. Expectativas de vida, amizades, mudanças, festas, amores, marcam o processo de amadurecimento dos personagens. Na minha opinião, o fato da narração não ser somente do diretor (que traz seus amigos para também contarem as histórias) enriquece os temas apresentados e aproxima o espectador desse grupo de amigos, diferente do que seria se apenas ouvíssemos o relato do diretor.
O curta inicia com Mouramateus relatando que comprou uma câmera fotográfica durante as filmagens de um curta, e que a princípio pensava em registrar os bastidores. Sendo assim, os relatos são acompanhados pelas fotografias colocadas em frente à câmera. Após a finalização das filmagens, Mouramateus afirma que manteve a câmera na bolsa e começou a fotografar festas com amigos e a própria rua, mais especificamente os cães da sua rua. Os registros dos cães também são parte de um cotidiano específico relatado pelo diretor. Ele conta que os fotografava sempre ao retornar à noite para a casa, na rua escura, com muitos cachorros e barulhos de latidos.
Ao decidir fotografar também as festas com os amigos, Mouramateus registrou parte dos últimos meses na cidade em que vivia. E como ele mesmo afirma em sua narração, a câmera com 36 poses as vezes circulava pelas mãos das pessoas que estavam nas festas, o que garantia diferentes ângulos, inclusive, do próprio diretor em frente à câmera: “então comecei a achar que aquelas fotos, essas fotos, tiradas por nós, falavam um pouco mais do que só sobre festas e sobre cães”. Ele revela assim, não só as surpresas que surgiam com a revelação das fotos, aspecto inexistente quando lidamos com a máquina digital. Imagino tudo o que foi despertado ao ver as imagens e ao “reviver” as situações na memória.
Segundo o pesquisador Rafael Almeida (2017, s/p), “o uso da fotografia no cinema garante, então, a possibilidade da existência de um espectador pensativo, uma audiência que reflita sobre as imagens que vê. Isso se dá, essencialmente, pela mistura de dois tempos distintos: o do filme e o da fotografia”. Nesse sentido, vale destacar que as narrações não são descritivas, o que permite ao espectador também um diálogo mais direto com as imagens apresentadas, abrindo espaço para a imaginação agir, preenchendo as lacunas.
Entendo que a proposta temática do curta também tem uma natureza reflexiva. No entanto, isso é acentuado pelo aspecto formal, como o uso das fotografias e da narração, assim como, pela escolha do diretor de trazer seus amigos para conversar sobre as imagens. As imagens ali apresentadas, que despertam naquelas pessoas vivências e lembranças, para nós, do público, podem ser catalizadoras de memórias próprias, remetendo a vivências pessoais que se conectam aos temas explorados no filme. Se cenas que acontecem em meio a uma festa poderiam ser caracterizadas por serem dinâmicas e barulhentas, o fato do curta se utilizar apenas das fotografias e narrações, nos concede um espaço maior de reflexão. Assim como, a combinação de fotografias e narração nos possibilita imaginar os acontecimentos fora do quadro.
Na minha visão, o curta é marcado por um tom melancólico, referente à passagem do tempo, dos amigos que se mudaram de cidade ou país e das elucubrações sobre futuros possíveis. Um diálogo que é muito simbólico sobre os temas tratados no curta é quando uma amiga de Leonardo pergunta: “Leo, por que você tira tantas fotos minhas?”, “Vai ver eu gosto de te ver envelhecer”. A fotografia é apresentada como uma paralisação do tempo, mas, também, como um meio de registrar a sua passagem.
Leornardo
Mouramateus está indo embora de Fortaleza e esse momento é registrado pela
única cena em que não são apresentadas fotografias. O diretor está sentado em
um quarto com um parente que fala sobre as marcas que sua ausência deixará. A
cena me pareceu marcante, já que o filme também discute o vazio deixado pelos
momentos que não voltam, as pessoas que se foram e pelas mudanças nas cidades que
conhecemos.
Por último, o filme de Mouramateus me fez pensar na letra de uma banda que tenho escutado muito recentemente. A música se chama Photos From When We Were Young da banda estadunidense Nana Grizol:
I was looking at photos from when we were young
Your hair is light blue and you're smiling in one
And it's a strange remembrance brought on by this semblance
Oh, we were so serious, shy, inexperienced
Oh-so unsure of ourselves
Making mistakes without anyone's help
And I thought of the ways I remember you well
Some sweet recollection of redwoods and raspberry
vines
Boys you wrote postcards to numerous times
The uncertainty then, like some sentence of sin
Punctuated by moments of tenderness
When there were long conversations, sharing of beds
Walks home from swimming pools
Giddy, impressionable, the distance grew up like the night
Decisions were silence or preemptive flight
O
curta está disponível no vimeo do próprio diretor e você pode acessar
através desse link https://vimeo.com/107410481.
Referência
ALMEIDA, Rafael de. Do espectador pensativo à imagem pensativa: fotografia e filme-ensaio. Revista Famecos. Porto Alegre, v.24, n.2, maio, junho e agosto de 2017.