Um dos livros que estou lendo atualmente
é “O Cinema no Século”, uma coletânea do escritor brasileiro Paulo Emiílio
Salles Gomes, lançada pela Companhia das Letras. Alguns destes textos são sobre
o diretor estadunidense John Ford. Em um deles, de 1941, que analisa o filme Tobacco Road do mesmo ano, Salles Gomes,
na página 95, faz uma consideração que me deixou pensativa sobre a minha
própria experiência assistindo os filmes de Ford:
A apresentação
de Tobacco Road significou para nós o
fortalecimento de uma probabilidade reconfortante – John Ford poderá nos enviar
filmes mais ou menos bons, ou mesmo maus, mas de qualquer maneira cremos que
será difícil que surja, com a responsabilidade de sua assinatura, um filme
vulgar. Isso nos leva imediatamente a uma outra consideração – não é possível
assistir uma só vez a um filme de John Ford.
Estou longe de
completar a extensa filmografia de Ford, mas essa afirmação me parece fazer jus
a tudo que assisti dele. E como todo excelente diretor, rever suas obras é fundamental.
Não somente para melhor apreciar os elementos formais, mas também para compreender
mais profunda e criticamente os temas, contextos e personagens, que o diretor
explora em suas histórias. Semana passada tive a oportunidade de assistir o
documentário Directed by John Ford, de
Peter Bogdanovich, e senti a necessidade de escrever sobre os meus sentimentos
conflitantes, não somente sobre o documentário, mas também sobre John Ford.
Cada vez entendo como fundamental sermos críticos também com artistas e obras
que admiramos, e entender que sentimentos diferentes sobre algo podem
coincidir.
A versão original do
documentário é de 1971, no entanto, assisti a versão revisada, lançada em 2006,
com entrevistas adicionais de diretores contemporâneos falando sobre o impacto
da obra de Ford. Para os interessados em história do cinema é um filme
importante, como os que Martin Scorsese fez sobre cinema estadunidense e cinema
italiano, e independente da sua opinião sobre a obra de Ford, a influência
desse diretor, principalmente, no contexto dos EUA, é inegável.
Penso que a adição de entrevistas com
diretores contemporâneos enriquece a discussão sobre os principais temas
explorados por Ford, e também sobre o impacto no cinema do país, através de
entrevistas com diretores como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Walter Hill e
Clint Eastwood. As realizadas com atores que trabalharam com Ford, como John
Wayne, James Stewart e Henry Fonda, se destacam por revelarem suas experiências
na relação com o próprio diretor e como eram os sets de filmagem. Não assisti a
versão de 1971, mas a que assisti traz um balanço interessante dos que
conviveram com Ford, além dos que se inspiraram na sua obra posteriormente e
ainda fazem filmes. O filme de Bogdanovich faz uma boa companhia a um filme
lançado também em 1971, The American West
of John Ford, dirigido por Denis Sanders (os entrevistados do período são
basicamente os mesmos).
É possível que uma das
partes mais conhecidas do filme seja quando Peter Bogdanovich entrevista o
próprio Ford, com uma bela paisagem de deserto compondo o cenário, e o diretor
não parece estar muito entusiasmado (para dizer o mínimo) em responder as perguntas.
Em várias ocasiões Ford rebate com respostas monossilábicas, e talvez a reação
inicial de quem está assistindo seja a risada, mas na realidade, imagino que
nenhuma pessoa gostaria de estar na pele do Bogdanovich naquele momento.
Apesar de ter gostado muito
do documentário acho válido apontar algumas questões que me incomodaram ao
longo do filme. Primeiramente, a falta de qualquer criticidade sobre a obra de
Ford, principalmente de diretores contemporâneos entrevistados para a versão
revisada, assim como do próprio diretor responsável pelo documentário. É por
isso que gosto mais de documentários no formato do Bergman: a year in a life (Jane Magnusson, 2018), em que apresenta
o diretor sueco como artista e também como uma pessoa repleta de contradições
(e as duas partes caminhando juntas).
Em
um ponto do documentário é apresentada a relação de John Ford com a história
estadunidense, nomeando os inúmeros filmes que representaram momentos
diferentes da história do país (alguns ainda não assisti). Nesse sentido,
gostaria de destacar duas falas que me chamaram a atenção: a primeira é quando Clint
Eastwood afirma que John Ford "não foi influenciado por uma geração do politicamente correto" e
por isso teria espaço para abordar certos temas da maneira que quisesse. É possível que Eastwood estivesse se referindo à representação da colonização do Oeste como uma grande narrativa de pessoas brancas e os povos originários relegados a vilões dessa história. No entanto, essa fala soa “engraçada”
se pensarmos na censura que marcou a Hollywood com o Código Hays (que durou de 1934 a 1968), período em que muitos diretores e diretoras tiveram seus trabalhados controlados/censurados.
A outra fala foi a de
Spielberg, que afirmou que John Ford foi um dos diretores estadunidenses mais patrióticos. Não sei
exatamente o que ele quis dizer com isso: seria por Ford ter um interesse
profundo pela história de seu país? Nesse sentido, nos cabe refletir sobre as
narrativas apresentadas por Ford em seus filmes e a forma da apresentação da
história dos EUA, especificamente sobre o período da formação nacional. A
afirmação de Spielberg me parece um tanto problemática. E vale dizer que
nenhuma dessas falas foi contestada ou foi apresentado algum tipo de
contraponto.
Que John Ford
apresentou ao longo de sua carreira um interesse profundo sobre o passado
estadunidense, isso não há dúvida. É importante afirmar que esse interesse não se
limita a filmes de faroeste (vale lembrar de filmes como “A Mocidade de
Lincoln”, de 1939). No entanto, é válido (e necessário) questionar de que
maneira Ford discute sobre esse passado, quem são os personagens e narrativas
que considera relevantes. Entendo que pelo tamanho (de importância e
quantidade) da obra do diretor seria fundamental tais questionamentos
aparecerem, principalmente, em um documentário relançando em 2006. No contexto
estadunidense, os debates que problematizaram o avanço e colonização do Oeste,
apontando os elementos de genocídio das populações originárias, por exemplo,
não era um debate novo em 2006.
Desta forma, me parece
que ainda uma boa parte de artistas/cineastas opta por uma romantização da
violência do período em uma saga protagonizada por pessoas brancas com uma
lógica de bons x maus, o que torna extremamente difícil debater a história de modo
complexo. Sendo assim, é difícil não lembrar da afirmação do jornalista no
final de “O Homem que Matou Facínora” (John Ford, 1962), que sempre me pareceu
uma maneira do próprio Ford pensar sobre a sua obra, de mais de 100 filmes.
“Este é o Oeste, senhor. Quando a lenda se torna fato, imprima a lenda”
Referências
- texto "Tobacco Road" de Paulo Emilio Salles Gomes em "O Cinema no Século" (Companhia das Letras, 2015)
Outros links:
*vídeos que achei interessante compartilhar sobre John Ford e alguns temas em discussão (infelizmente alguns são em inglês sem legenda):
1939: Stagecoach - How John Ford saved the Western
A sutileza de John Ford
O Homem que Matou o Velho Oeste - uma discussão muito interessante sobre o filme "O Homem que Matou o Facínora".
Reel Injun (trailer) - documentário sobre a representação dos povos originários no cinema estadunidense / hollywoodiano. Propõe questões importantes para que possamos assistir filmes como os de John Ford de forma mais crítica.
Directed By John Ford - mini documentário sobre o diretor feito pela TCM com afirmações um tanto romantizadas mas é interessante por contar um pouco sobre Ford e ter falas do próprio diretor sobre seus filmes.
Parabéns por mais essa publicação, Tati! Primeiro quero dizer que Paulo Emílio Salles Gomes foi um gênio e que temos que recuperar a obra desse autor inestimável. Eu não assisti ao documentário do Bogdanovich, ainda assim me chamam a atenção algumas questões que tu traz no post. Sobretudo o do Faroeste como emulação (diferente de forja) de uma nacionalidade estadunidense. Baseado em preceitos básicos, em uma moralidade singular, onde a vontade do homem - não apenas como espécie, mas como gênero - dita as regras e alimenta uma noção de moralismo que cumpre o papel de justificação dos ensejos de dominação. Os indígenas, como tu bem apontou, nos filmes de Ford (digam-se de passagem técnicamente impecáveis, como poucos) não apenas cumpriam o papel de vilânia, mas também de bestialização. São indivíduos pouco providos de racionalidade e humanidade. Esse espírito, supostamente inaugurador da noção de estadunidense, completamente envolto em barbárie e sanha de dominação, é reivindicado como uma espécie de "patriotismo ingênuo". A tal ponto do "coubói" Clint e do judeu progressista Spielnberg chegarem a conclusões similares, tanto no olhar edílico, quanto ao ignorar a violência colonial que promovem.
ResponderExcluirReitero que não assiti ao filme, são apenas reflexões que me vieram ao ler teu texto.
Ótimo! Bom trabalho! Até a próxima!
Obrigada pela leitura e feedback, Alexandre. O faroeste é um gênero ríquissimo para discutir cultura e história estadunidense. e é interessante como esses filmes desse período do Ford continuam a influenciar filmes feitos atualmente, não só formalmente mas tematicamente. ultimamente tenho me interessado muito pelo gênero e tenho notado a riqueza em relação a diferentes propostas e maneiras de pensar a colonização do Oeste.
ExcluirE sobre o Salles Gomes: preciso ler mais coisas dele. o que li, gostei bastante.