segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Directed by John Ford (Peter Bogdanovich, 2006)

       Um dos livros que estou lendo atualmente é “O Cinema no Século”, uma coletânea do escritor brasileiro Paulo Emiílio Salles Gomes, lançada pela Companhia das Letras. Alguns destes textos são sobre o diretor estadunidense John Ford. Em um deles, de 1941, que analisa o filme Tobacco Road do mesmo ano, Salles Gomes, na página 95, faz uma consideração que me deixou pensativa sobre a minha própria experiência assistindo os filmes de Ford: 


A apresentação de Tobacco Road significou para nós o fortalecimento de uma probabilidade reconfortante – John Ford poderá nos enviar filmes mais ou menos bons, ou mesmo maus, mas de qualquer maneira cremos que será difícil que surja, com a responsabilidade de sua assinatura, um filme vulgar. Isso nos leva imediatamente a uma outra consideração – não é possível assistir uma só vez a um filme de John Ford.

Estou longe de completar a extensa filmografia de Ford, mas essa afirmação me parece fazer jus a tudo que assisti dele. E como todo excelente diretor, rever suas obras é fundamental. Não somente para melhor apreciar os elementos formais, mas também para compreender mais profunda e criticamente os temas, contextos e personagens, que o diretor explora em suas histórias. Semana passada tive a oportunidade de assistir o documentário Directed by John Ford, de Peter Bogdanovich, e senti a necessidade de escrever sobre os meus sentimentos conflitantes, não somente sobre o documentário, mas também sobre John Ford. Cada vez entendo como fundamental sermos críticos também com artistas e obras que admiramos, e entender que sentimentos diferentes sobre algo podem coincidir.  
        A versão original do documentário é de 1971, no entanto, assisti a versão revisada, lançada em 2006, com entrevistas adicionais de diretores contemporâneos falando sobre o impacto da obra de Ford. Para os interessados em história do cinema é um filme importante, como os que Martin Scorsese fez sobre cinema estadunidense e cinema italiano, e independente da sua opinião sobre a obra de Ford, a influência desse diretor, principalmente, no contexto dos EUA, é inegável.
Penso que a adição de entrevistas com diretores contemporâneos enriquece a discussão sobre os principais temas explorados por Ford, e também sobre o impacto no cinema do país, através de entrevistas com diretores como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Walter Hill e Clint Eastwood. As realizadas com atores que trabalharam com Ford, como John Wayne, James Stewart e Henry Fonda, se destacam por revelarem suas experiências na relação com o próprio diretor e como eram os sets de filmagem. Não assisti a versão de 1971, mas a que assisti traz um balanço interessante dos que conviveram com Ford, além dos que se inspiraram na sua obra posteriormente e ainda fazem filmes. O filme de Bogdanovich faz uma boa companhia a um filme lançado também em 1971, The American West of John Ford, dirigido por Denis Sanders (os entrevistados do período são basicamente os mesmos).
É possível que uma das partes mais conhecidas do filme seja quando Peter Bogdanovich entrevista o próprio Ford, com uma bela paisagem de deserto compondo o cenário, e o diretor não parece estar muito entusiasmado (para dizer o mínimo) em responder as perguntas. Em várias ocasiões Ford rebate com respostas monossilábicas, e talvez a reação inicial de quem está assistindo seja a risada, mas na realidade, imagino que nenhuma pessoa gostaria de estar na pele do Bogdanovich naquele momento. 
Apesar de ter gostado muito do documentário acho válido apontar algumas questões que me incomodaram ao longo do filme. Primeiramente, a falta de qualquer criticidade sobre a obra de Ford, principalmente de diretores contemporâneos entrevistados para a versão revisada, assim como do próprio diretor responsável pelo documentário. É por isso que gosto mais de documentários no formato do Bergman: a year in a life (Jane Magnusson, 2018), em que apresenta o diretor sueco como artista e também como uma pessoa repleta de contradições (e as duas partes caminhando juntas).
Em um ponto do documentário é apresentada a relação de John Ford com a história estadunidense, nomeando os inúmeros filmes que representaram momentos diferentes da história do país (alguns ainda não assisti). Nesse sentido, gostaria de destacar duas falas que me chamaram a atenção: a primeira é quando Clint Eastwood afirma que John Ford "não foi influenciado por uma geração do politicamente correto" e por isso teria espaço para abordar certos temas da maneira que quisesse. É possível que Eastwood estivesse se referindo à representação da colonização do Oeste como uma grande narrativa de pessoas brancas e os povos originários relegados a vilões dessa história. No entanto, essa fala soa “engraçada” se pensarmos na censura que marcou a Hollywood com o Código Hays (que durou de 1934 a 1968), período em que muitos diretores e diretoras tiveram seus trabalhados controlados/censurados.  
A outra fala foi a de Spielberg, que afirmou que John Ford foi um dos diretores estadunidenses mais patrióticos. Não sei exatamente o que ele quis dizer com isso: seria por Ford ter um interesse profundo pela história de seu país? Nesse sentido, nos cabe refletir sobre as narrativas apresentadas por Ford em seus filmes e a forma da apresentação da história dos EUA, especificamente sobre o período da formação nacional. A afirmação de Spielberg me parece um tanto problemática. E vale dizer que nenhuma dessas falas foi contestada ou foi apresentado algum tipo de contraponto.
Que John Ford apresentou ao longo de sua carreira um interesse profundo sobre o passado estadunidense, isso não há dúvida. É importante afirmar que esse interesse não se limita a filmes de faroeste (vale lembrar de filmes como “A Mocidade de Lincoln”, de 1939). No entanto, é válido (e necessário) questionar de que maneira Ford discute sobre esse passado, quem são os personagens e narrativas que considera relevantes. Entendo que pelo tamanho (de importância e quantidade) da obra do diretor seria fundamental tais questionamentos aparecerem, principalmente, em um documentário relançando em 2006. No contexto estadunidense, os debates que problematizaram o avanço e colonização do Oeste, apontando os elementos de genocídio das populações originárias, por exemplo, não era um debate novo em 2006. 
Desta forma, me parece que ainda uma boa parte de artistas/cineastas opta por uma romantização da violência do período em uma saga protagonizada por pessoas brancas com uma lógica de bons x maus, o que torna extremamente difícil debater a história de modo complexo. Sendo assim, é difícil não lembrar da afirmação do jornalista no final de “O Homem que Matou Facínora” (John Ford, 1962), que sempre me pareceu uma maneira do próprio Ford pensar sobre a sua obra, de mais de 100 filmes.   

“Este é o Oeste, senhor. Quando a lenda se torna fato, imprima a lenda”


Referências 


- texto "Tobacco Road" de Paulo Emilio Salles Gomes em "O Cinema no Século" (Companhia das Letras, 2015)


Outros links:

*vídeos que achei interessante compartilhar sobre John Ford e alguns temas em discussão (infelizmente alguns são em inglês sem legenda):

1939: Stagecoach - How John Ford saved the Western

A sutileza de John Ford

O Homem que Matou o Velho Oeste - uma discussão muito interessante sobre o filme "O Homem que Matou o Facínora".

Reel Injun (trailer) - documentário sobre a representação dos povos originários no cinema estadunidense / hollywoodiano. Propõe questões importantes para que possamos assistir filmes como os de John Ford de forma mais crítica. 

Directed By John Ford - mini documentário sobre o diretor feito pela TCM com afirmações um tanto romantizadas mas é interessante por contar um pouco sobre Ford e ter falas do próprio diretor sobre seus filmes. 

2 comentários:

  1. Parabéns por mais essa publicação, Tati! Primeiro quero dizer que Paulo Emílio Salles Gomes foi um gênio e que temos que recuperar a obra desse autor inestimável. Eu não assisti ao documentário do Bogdanovich, ainda assim me chamam a atenção algumas questões que tu traz no post. Sobretudo o do Faroeste como emulação (diferente de forja) de uma nacionalidade estadunidense. Baseado em preceitos básicos, em uma moralidade singular, onde a vontade do homem - não apenas como espécie, mas como gênero - dita as regras e alimenta uma noção de moralismo que cumpre o papel de justificação dos ensejos de dominação. Os indígenas, como tu bem apontou, nos filmes de Ford (digam-se de passagem técnicamente impecáveis, como poucos) não apenas cumpriam o papel de vilânia, mas também de bestialização. São indivíduos pouco providos de racionalidade e humanidade. Esse espírito, supostamente inaugurador da noção de estadunidense, completamente envolto em barbárie e sanha de dominação, é reivindicado como uma espécie de "patriotismo ingênuo". A tal ponto do "coubói" Clint e do judeu progressista Spielnberg chegarem a conclusões similares, tanto no olhar edílico, quanto ao ignorar a violência colonial que promovem.
    Reitero que não assiti ao filme, são apenas reflexões que me vieram ao ler teu texto.
    Ótimo! Bom trabalho! Até a próxima!

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    1. Obrigada pela leitura e feedback, Alexandre. O faroeste é um gênero ríquissimo para discutir cultura e história estadunidense. e é interessante como esses filmes desse período do Ford continuam a influenciar filmes feitos atualmente, não só formalmente mas tematicamente. ultimamente tenho me interessado muito pelo gênero e tenho notado a riqueza em relação a diferentes propostas e maneiras de pensar a colonização do Oeste.
      E sobre o Salles Gomes: preciso ler mais coisas dele. o que li, gostei bastante.

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