Um dos filmes mais
legais que assisti nos primeiros dias desse ano foi o longa de estreia do
mexicano Juan Bastillo Oro, chamado “Dois Monges” (Dos Monges, 1934). O diretor
Martin Scorsese, ao falar sobre o filme e sua versão restaurada para a edição
da Criterion, o destaca como uma das obras
do chamado ‘Cinema Gótico Mexicano’, juntamente com El Fantasma del Convento (1934), dirigido por Fernando de Fuentes,
e El Misterio del Rostro Palido
(1935) também dirigido por Oro. Assim como, é notável a influência
expressionista no filme, tema discutido em uma série que encontrei no Youtube
sobre cinema mexicano. Nela, o pesquisador Genaro Saul Reyes discute o cinema
de Oro e evidencia “Dois Monges” como um filme que se destaca pelo uso dos
elementos visuais para contar a história.
Pelas primeiras cenas
do filme é possível pensar que estamos diante de uma história com elementos
sobrenaturais. Os monges de um mosteiro sombrio rezam contra o diabo e a
possível possessão de um dos que moram lá. Aos poucos, o que acontece com o
monge Javier (Carlos Villatoro) são aflições bastante terrenas, que nos serão
reveladas através de dois flashbacks. Nesse contexto, em que os monges acreditam
na possessão de um deles, o monge Juan (Víctor Urruchúa) chega no mosteiro para
ajudar na cura de Javier. Quando se encontram, Javier tenta matá-lo. A partir
desse acontecimento, o responsável pela congregação conversa com os dois para
entender o que aconteceu e descobre que os motivos em nada se relacionam com o sobrenatural.
Além de a história ser
instigante, dois elementos me chamaram atenção no filme de Oro. Primeiro, a
questão visual e sua influência expressionista. Nesse quesito, é possível
destacar não somente o trabalho da iluminação e o uso do claro e escuro, mas
como a câmera explora os personagens no cenário, também, o uso de ângulos
inclinados, nos revelando a perturbação do personagem e também da própria
situação. “Dois Monges” é muito eficaz em nos transmitir a frieza da vida
monástica, em contraste com a vida que Javier tinha antes de estar ali. Iluminação,
cenário e figurino bem utilizados em suas funções dramáticas nas histórias de
Javier e Juan.
Nesse ponto, vale
destacar o segundo fator que destaco, a maneira como a narrativa é estruturada,
com a utilização de dois flashbacks, nos quais os personagens (Javier e Juan), relatam
suas versões da história. Não conheço a história do cinema mexicano, mas, no
caso de Hollywood, o flashback só se tornaria um recurso narrativo comum a
partir da década de 1940. A maneira como esse recurso é utilizado em “Dois
Monges” me fez pensar em “Rashomon” (1950), de Akira Kurosawa, e o filme
mexicano, como pontuado por Scorsese no vídeo já mencionado, foi lançado
muitos anos antes.
A cena que antecede o
primeiro flashback apresenta o líder
da congregação interpelando Javier para entender suas motivações. Ao conhecermos
a sua história - um pianista que não tem muito dinheiro, mora com a mãe e se
apaixona por uma jovem mulher - somos conduzidos a crer que a vinda de Juan (na
época amigo íntimo de Javier) é o prenúncio de algo ruim. Num sentido o é, mas
não pelos motivos que o flashback nos leva a pensar. Na memória de Javier, Juan
muitas vezes é um espectro que assombra sua possibilidade de felicidade, sempre
vestindo roupas escuras em contraponto a seu amigo. Já no primeiro flashback
esse binarismo é construído com eficácia. No entanto, ele é invertido quando
Juan tem a oportunidade de relatar sua própria versão dos fatos. Após
assistirmos as duas versões o que fica claro é a tragédia que marcou a vida dos
dois homens, que se refugiaram na vida monástica após os acontecimentos
relatados. Ambos vivem vidas austeras, dedicados às atividades do mosteiro e
sem nenhum envolvimento emocional com ninguém.
Referências
- O vídeo mencionado de Martin Scorsese
foi lançado no Brasil como um extra no box “Obras Primas do Terror: Horror
Mexicano Vol. 2” da distribuidora Versátil Home Video;
- A discussão sobre o uso do flashback
como recurso narrativo no cinema estadunidense dos anos 1940 foi debatido no livro Reinventing
Hollywood: How 1940s Filmmakers Changed Movie Storytelling (lançado em 2017)
de David Bordwell. O autor também relata em sua pesquisa que na década de 1930 era um
recurso raramente utilizado e relegado a filmes B;
- o texto “Terror em Terra Quente: fragmentos da América Latina”, escrito por Carlos Alberto Carrilho, para um panorama sobre o
terror na AL em países como México, Argentina e Brasil;
- Sobre Juan
Bastillo Oro (episódios de uma série sobre história do cinema mexicano):
Parte 1;
Parte 2;
Parte 3;
Parte 4;
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