terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Sobre "Uma Página de Loucura" (Teinosuke Kinugasa, 1926)


Decidi começar um blog para compartilhar minhas impressões sobre filmes que assisto e, se possível, proporcionar espaços de diálogo. Acredito ser interessante focar em filmes produzidos antes da década de 1960 (independente do país), pois é um período que muito me instiga. E o filme escolhido para abrir esse espaço, “Uma Página de Loucura” (1926) dirigido pelo japonês Teinosuke Kinugasa, está relacionado com as conversas das quais participei no podcast do grupo de pesquisa PhotoGraphein, que também integro, principalmente na sua segunda temporada, pautada no livro “Em Louvor das Sombras” de Junichiro Tanizaki. E além de gostar muito de cinema japonês, tenho uma vontade de conhecer mais sobre o período do cinema mudo (admito que minha lacuna é grande, independente do contexto). 
De forma geral, a estimativa de perdas das cópias de obras do cinema mudo é enorme, com porcentagem em torno de 70%/80% (Read; Meyer, 2000). E em relação ao cinema japonês, grande parte é considerada perdida, seja por conta de desastre natural ou da guerra. O filme de Kinugasa por muitos anos acreditou-se que também estaria perdido para a história, mas o próprio diretor encontrou uma cópia em 1971. Infelizmente os 34 filmes feitos anteriormente a esse são considerados perdidos. Anos depois, Kinugasa conquistou um Oscar e o Grand Prize de Cannes por “Portal do Inferno” (1953), assim como outros prêmios em Cannes e Locarno.
“Uma Página de Loucura” é baseado numa história do escritor japonês Yasunari Kawabata, vencedor do Nobel de literatura em 1968, e tem como um dos assistentes de câmera Eiji Tsuburaya, conhecido como um artista de efeitos especiais, responsável pelo clássico "Godzilla", de 1954. Como relata Chris Fujiwara, quando o filme foi lançado tinha 103 minutos de duração, no entanto, a versão que conhecemos atualmente tem um pouco mais de 70 minutos. Em seu texto, Fujiwara menciona fontes que atribuem essa diminuição a uma intervenção do próprio diretor.
Outro elemento importante é o fato do filme não ter intertítulos. Nesse período, no Japão muitos filmes eram acompanhados por uma espécie de narrador, conhecidos como Benshi, que eram parte integrante da experiência de ir ao cinema durante o período. Nesse sentido, a falta de qualquer elemento textual talvez torne a narrativa um pouco confusa de acompanhar, mas para uma obra tão fascinante visualmente, as imagens têm muito a dizer sobre o que está acontecendo com os personagens. As respostas podem não ser diretas, mas isso pouco importa.
A história acompanha um homem que está trabalhando no hospício onde sua mulher foi internada, ao longo do filme é revelada a sua intenção de tirá-la de lá. O pouco que sabemos da história dos dois é transmitida através de flashbacks, nos quais é apresentado o acontecimento de uma tragédia, a morte de um bebê, o que provavelmente levou a mulher à internação. O filme mescla realidade e imaginação, passado e presente. Essas informações não são esclarecidas, o que só contribui para a criação de uma atmosfera de confusão. As diferenciações são criadas também através da câmera, com o uso de enquadramentos não lineares e efeitos, como, por exemplo, quando apresenta o hospício pela visão da mulher internada e a imagem está distorcida.
O filme de Kinugasa é marcado por um ritmo rápido, frenético em algumas sequências, com uma montagem repleta de cortes rápidos. As cenas, quase todas filmadas dentro do hospício, são sombrias, com o uso de ângulos tortos e efeitos que marcam a desorientação no cotidiano daquele espaço. Em cenas feitas fora do hospício é possível notar um contraste na maneira como o diretor apresenta a vivência dentro e fora daquele lugar.
Acredito que é possível destacar dois elementos visuais que se repetem ao longo do filme, e que me parecem simbólicos do que os personagens estão vivendo, não só o protagonista. Primeiro, é constante nos enquadramentos de Kinugasa o aparecimento de barras de ferro ou suas sombras projetadas, demarcando o aprisionamento dos personagens, seja de forma direta, como é o caso dos pacientes do hospício, como de forma mais metafórica, numa alusão ao protagonista que deseja resgatar a esposa. Num dos momentos finais tem uma cena um tanto surrealista, na qual as barras parecem se fundir ao rosto do protagonista, com tudo o mais distorcido. A questão do aprisionamento do protagonista pode também se referir a outro ponto que acho relevante, que é a possibilidade dele também estar enlouquecendo ao longo do filme.


Nesse sentido, o outro ponto que destaco foi o apresentado na review do canal Dark Corner Reviews, quando chama a atenção para a utilização de formas circulares reiteradas ao longo da história. Está presente na dança de uma das pacientes do hospício, provavelmente uma antiga dançarina, mas também nas imagens de círculos que se repetem ao longo do filme. Para mim, a circularidade está relacionada ao tempo, um tempo que é sempre o mesmo no interior do hospital, e a noção de repetição também é marcada pela trilha sonora. É uma trilha que assombra, acompanhada das imagens de pessoas possivelmente abandonadas naquele lugar - importante dizer que a versão que assisti tem trilha composta pela The Alloy Orchestra, atualmente chamada de The Anvil Orchestra.


No tempo repetitivo do hospício, o filme dá indícios do protagonista estar perdendo a sanidade, em sequências que ele imagina ou lembra de determinadas situações, como um flashback ou um sonho, e a cena retorna a ele no tempo presente. Assim como,  em uma das últimas e mais impactantes sequências do filme, na qual ele distribui máscaras do teatro Noh para todos os pacientes e finalmente coloca uma em seu rosto. "Uma Página de Loucura" foi o primeiro filme que assisti do Kinugasa mas sem dúvida não será o último. Em muitas ocasiões quando se discute os períodos de vanguarda do cinema os olhares se voltam para a Europa, o que limita não só a possibilidade de conhecimento de outros filmes, como a maneira que pensamos a tal "História do Cinema". 


Referências

A Brief History of Benshi (Silent Film Narrators) – Jeffery Dym
https://aboutjapan.japansociety.org/a_brief_history_of_benshi
A Page of Madness – Michael Atkinson
https://silentfilm.org/a-page-of-madness/
A Page of Madness – Chris Fujiwara
https://ebertfest.com/films/page-madness
Alloy Orchestra Changes to The Anvil Orchestra, a Name Coined by Roger Ebert – Chaz Ebert
https://www.rogerebert.com/chazs-blog/alloy-orchestra-changes-to-the-anvil-orchestra-a-name-coined-by-roger-ebert
Restoration of Motion Picture Film – Paul Read e Mark-Paul Meyer
Podcast Japan House SP – Episódio: “Cinema japonês nas premiações: Oscar, Cannes, Veneza e outros festivais”
https://podcast.japanhousesp.com.br/podcast/cinema-japones-nas-premiacoes-oscar-cannes-veneza-e-outros-festivais

 




Princess Cyd (Stephen Cone, 2017)