Decidi começar um blog para compartilhar minhas impressões sobre filmes que assisto e, se possível, proporcionar espaços de diálogo. Acredito ser interessante focar em filmes produzidos antes da década de 1960 (independente do país), pois é um período que muito me instiga. E o filme escolhido para abrir esse espaço, “Uma Página de Loucura” (1926) dirigido pelo japonês Teinosuke Kinugasa, está relacionado com as conversas das quais participei no podcast do grupo de pesquisa PhotoGraphein, que também integro, principalmente na sua segunda temporada, pautada no livro “Em Louvor das Sombras” de Junichiro Tanizaki. E além de gostar muito de cinema japonês, tenho uma vontade de conhecer mais sobre o período do cinema mudo (admito que minha lacuna é grande, independente do contexto). De forma geral, a
estimativa de perdas das cópias de obras do
cinema mudo é enorme, com porcentagem em torno de 70%/80% (Read; Meyer, 2000). E em
relação ao cinema japonês, grande parte é considerada perdida, seja por conta
de desastre natural ou da guerra. O filme de Kinugasa por muitos anos
acreditou-se que também estaria perdido para a
história, mas o próprio diretor encontrou uma cópia em 1971. Infelizmente os 34
filmes feitos anteriormente a esse são
considerados perdidos. Anos depois, Kinugasa conquistou
um Oscar e o Grand Prize de Cannes
por “Portal do Inferno” (1953), assim como outros prêmios em Cannes e Locarno.
“Uma Página de Loucura”
é baseado numa história do escritor japonês Yasunari Kawabata, vencedor do Nobel de literatura em 1968, e tem como um
dos assistentes de câmera Eiji Tsuburaya, conhecido como um artista de efeitos
especiais, responsável pelo clássico "Godzilla", de 1954. Como relata Chris Fujiwara,
quando o filme foi lançado tinha 103 minutos de duração, no entanto, a versão
que conhecemos atualmente tem um pouco mais de 70 minutos. Em seu texto,
Fujiwara menciona fontes que atribuem essa diminuição a uma intervenção do
próprio diretor.
Outro elemento
importante é o fato do filme não ter intertítulos. Nesse período, no Japão muitos
filmes eram acompanhados por uma espécie de narrador, conhecidos como Benshi, que eram parte integrante da
experiência de ir ao cinema durante o período. Nesse sentido, a falta de
qualquer elemento textual talvez torne a narrativa um pouco confusa de
acompanhar, mas para uma obra tão fascinante visualmente, as imagens têm muito
a dizer sobre o que está acontecendo com os personagens. As respostas podem não
ser diretas, mas isso pouco importa.
A história acompanha um
homem que está trabalhando no hospício onde sua
mulher foi internada, ao longo do filme é revelada a
sua intenção de tirá-la de lá. O pouco que
sabemos da história dos dois é transmitida através de flashbacks, nos quais é
apresentado o acontecimento de uma tragédia, a morte de um bebê, o que
provavelmente levou a mulher à internação. O
filme mescla realidade e imaginação, passado e presente. Essas informações não
são esclarecidas, o que só contribui para a criação de uma atmosfera de
confusão. As diferenciações são criadas também através da câmera, com o uso de enquadramentos não
lineares e efeitos, como, por exemplo, quando apresenta o hospício pela visão
da mulher internada e a imagem está distorcida.
O filme de Kinugasa é
marcado por um ritmo rápido, frenético em algumas sequências, com uma montagem
repleta de cortes rápidos. As cenas, quase todas filmadas dentro do hospício,
são sombrias, com o uso de ângulos tortos e efeitos que marcam a desorientação
no cotidiano daquele espaço. Em cenas feitas fora do hospício é possível notar
um contraste na maneira como o diretor apresenta a vivência dentro e fora
daquele lugar.
Acredito que é possível destacar dois
elementos visuais que se repetem ao longo do
filme, e que me parecem simbólicos do que os personagens estão vivendo, não só o protagonista. Primeiro, é constante nos enquadramentos de Kinugasa o aparecimento de barras de ferro ou suas sombras
projetadas, demarcando o aprisionamento dos personagens, seja de forma direta,
como é o caso dos pacientes do hospício, como de forma mais metafórica, numa alusão ao protagonista que deseja resgatar a
esposa. Num dos momentos
finais tem uma cena um tanto surrealista, na qual as barras parecem se fundir ao rosto do protagonista,
com tudo o mais distorcido. A questão do
aprisionamento do protagonista pode também se referir a outro ponto que acho
relevante, que é a possibilidade dele também estar enlouquecendo ao longo do
filme.
Nesse sentido, o outro
ponto que destaco foi o apresentado na review do canal Dark Corner Reviews, quando chama a atenção para a utilização de formas circulares reiteradas ao longo da história. Está presente na dança de uma das pacientes do hospício, provavelmente
uma antiga dançarina, mas também nas imagens de círculos que se repetem ao
longo do filme. Para mim, a circularidade está relacionada ao tempo, um tempo
que é sempre o mesmo no interior do hospital, e a noção de repetição também é marcada pela trilha sonora. É uma trilha que assombra, acompanhada das imagens de pessoas possivelmente
abandonadas naquele lugar - importante dizer que a versão que assisti tem trilha
composta pela The Alloy Orchestra,
atualmente chamada de The Anvil Orchestra.
No tempo repetitivo do
hospício, o filme dá indícios do protagonista estar perdendo a sanidade, em sequências que
ele imagina ou lembra de determinadas situações,
como um flashback ou um sonho, e a cena retorna a ele no tempo presente. Assim como, em uma das últimas e mais impactantes sequências do filme, na qual ele distribui máscaras do teatro Noh para todos os pacientes e finalmente
coloca uma em seu rosto. "Uma Página de Loucura" foi o primeiro filme que assisti do Kinugasa mas sem dúvida não será o último. Em muitas ocasiões quando se discute os períodos de vanguarda do cinema os olhares se voltam para a Europa, o que limita não só a possibilidade de conhecimento de outros filmes, como a maneira que pensamos a tal "História do Cinema".
Referências
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