sábado, 31 de agosto de 2024

Decasia (Bill Morrison, 2003)


Assistir Decasia (2002) de Bill Morrison foi uma experiência muito particular, especialmente por pouco saber sobre o filme. Em tempos nos quais o digital domina as conversas sobre praticamente tudo que está a nossa volta, Morrison nos lembra de voltar a nossa atenção às materialidades que fazem parte da história do cinema, principalmente o filme em película. Decasia também nos remete às consequências diretas do esquecimento e descaso com esses materiais, os efeitos devastadores da ação do tempo na película e consequentemente na nossa memória cultural. No entanto, não entendo que o interesse de Morrison é apenas com a perda, sim, com as potencialidades desses materiais em condições inadequadas a uma projeção comum em uma sala de cinema.  

O autor Bernd Herzogenrath (2018), no livro que organizou sobre a obra de Bill Morrison, destacou a relação entre a película cinematográfica e o tempo. Penso que é exatamente esse o foco destacado por Morrison em Decasia, na medida em que aborda diretamente a possibilidade da perda, de determinadas películas serem atingida pela ação nociva do tempo, apresentando novas possibilidades de uso para ela. Como destaca o autor, o material fílmico está sujeito ao longo dos anos aos “sinais dos tempos”, seja do período em que foi projetado mas também do tempo em que ficou parado, guardado em algum lugar (em muitos casos, em condições não apropriadas de armazenamento deste tipo de material). Essas marcas ficam muito clara a cada sequência de Decasia, as imagens originalmente gravados em algum momento do início do século XX ganharam novas características. Assim como, uma nova vida no filme do diretor.

still do filme Decasia

Decasia é uma montagem feita de found-footage de filmes em várias estágios de decomposição” (Herzogenrath, 2018,  p.84). O filme estreou em um evento na Suiça em 2011 acompanhado por uma orquestra com a música composta por Michael Gordon (Betancourt, 2015). Só posso imaginar a oportunidade imersiva de assistir o filme dessa maneira, assim como, em uma sala de cinema. Não é um filme para acompanhar uma história com várias personagens, mas sim, acompanhar as imagens e o que estas podem nos comunicar. Não só através das características físicas modificadas da película, mas também observando como Bill Morrison se utiliza das mudanças físicas do material trabalhando diretamente com a montagem. 

Como é destacado no texto de Alexandre Costa e Miriam Mendes (2016), Decasia é um filme que oferece questionamentos sobre o tempo e a morte. Adicionaria nessa equação também o esquecimento, filmes perdidos no tempo, fragmentos de películas que talvez não foram arquivados inteiros, e principalmente, filmes que estão em estado de decomposição e deixarão de existir.  É possível pensar negativamente sobre a discussão apresentada por Morrison, mas o que ele faz em seus filmes, não somente em Decasia, é dar uma nova vida a esses fragmentos, coloca-los em contexto diferente do original. O que também estabelece uma nova relação o tempo.

"O filme é visto como uma representação do tempo - Decasia vai além ao focar na temporalidade do ou no material fílmico em si" (Herzogenrath, 2018, p.83). Relativo a essa questão, Bernd Herzogenrath entende que o filme de Morrison foi diretamente influenciado pelo cinema estadunidense experimental das décadas de 1960 e 1970, devido especialmente ao foco no material fílmico e na estrutura do filme em si. Uma outra questão relevante levantada pelo autor refere-se ao fato de que o diretor pouco tratou as sequencias do filme a fim de “melhorar” a imagem. Já que sua proposta era exatamente abordar os efeitos do tempo na película e o que a decomposição causa às imagens.

Para mim, o filme de Morrison foi uma experiencia sensorial única. Me fez pensar racionalmente sobre questões como restauração fílmica, arquivo, conservação, mas especialmente, me fez sentir esses dilemas através da montagem das sequencias.  Ela proporciona acompanhar o movimento entre as cenas de filmes diferentes, assim como, o movimento contido nos frames, causado pela própria decomposição da película.

De acordo com Costa e Mendes “... as imagens que compõem Decasia não são mais restos, mas fraturas que o tempo abre em interrupção. O salto de uma imagem a outra se dá pela sua desintegração, pelo entrelaçamento das ruínas que o tempo provoca sobre a película” (2016, p.268). Entendo que essa afirmação dos autores dialoga diretamente com o conceito utilizado por Herzogenrath (2018) sobre o cinema de Morrison, que é a “poética da ruína”. Este conceito, segundo o autor, relaciona-se a como o filme discute a historicidade do material em si, inclusive a própria noção de “mortalidade” da película, que pode perecer com o tempo.

Nesse sentido, Herzogenrath discorre sobre a relação entre o entendimento de ruína presente em Decasia e como a decomposição/destruição de um material o transforma em outro. O binário vida / morte é uma constante no filme e ele opera ao longo de todo o longa de Morrison. Nos lembrando que desse material que talvez muitos considerariam perdido e inútil, nasce algo novo. No contexto do cinema de Morrison vida e morte se alimentam para produzir uma discussão profunda sobre um elemento fundamental da história do cinema, que é o material que fez possível a magia que vivenciamos na sala escura.

Entretanto, é fundamental considerar uma questão colocada por Michael Betancourt (2015) em seu texto sobre o filme, Decasia é um filme sobre “um mundo em decadência”, afirmação que me fez pensar sobre aquilo que não existe mais, mas também aquilo que é conservado para que não se perca. Os fragmentos de filmes utilizados por Morrison são de nitrato, o que significa uma data específica dessas produções, marcando o início do século XX. Soma-se a isso, a dificuldade de preservação desses materiais. Filmes em nitrato não são mais produzidos desde a década de 1950, mas também existe os filmes/fragmentos que foram preservados ao longo da história. Mesmo com um mundo voltado para as tecnologias digitais, o material em película ainda resiste de algum modo, tanto na produção de alguns cineastas, como também no trabalho e pesquisa daqueles que se dedicam ao analógico.

Decasia é um ‘filme de terror’ em que o horror que apresenta como a corrupção imposta pelo tempo sobre as coisas que as pessoas criam é também parte inevitável do mundo em que vivemos” (ibid., s/p). Ao longo de todo o tempo somos lembrados dessa possibilidade, no entanto, a parte mais triste é que muito do que já perdemos da nossa memória cultural era evitável, fruto do descaso declarado à importância dessas obras de arte para a vida em sociedade. 


REFERÊNCIAS 

BETANCOURT, Michael. Dread Mechanics: The Sublime Terror of Bill Morrison's Decasia (2002) In Bright Lights Film Journal, 2015. 

COSTA, Alexandre Rodrigues da; MENDES, Miriam Aparecida. Além do acaso estúpido da química: o informe como manipulação do tempo em Decasia: the state of decay, de Bill Morrison In Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Rebeca), junho de 2016. 

HERZOGENRATH, Bernd. Decasia The Matter/Image: Film is also a Thing In  HERZOGENRATH, Bernd (ed.). The Films of Bill Morrison: aesthetics of the archive. Amsterdam University Press, 2018.

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