Recentemente assisti o filme "Carol" novamente (pela décima vez, provavelmente). E é muito instigante quando a história de um filme, assistidos tantas vezes, apresenta novas questões a cada revisitação. Dessa vez, fiquei pensando em uma questão específica que ressoou com uma leitura que fiz logo depois, o texto de Patricia White, Lesbian Reverie: Carol in History and Fantasy que está no livro Reframing Todd Haynes: Feminism’s Indelible Mark, editado por Theresa L. Geller e Julia Leyda e lançado em 2022 pela Duke University Press.
Resumidamente, "Carol" (Todd Haynes, 2015), baseado no romance de Patricia Highsmith e roteirizado por Phyllis Nagy, conta a história de duas mulheres que se apaixonam na Nova York da década de 1950. Therese (Rooney Mara), uma jovem fotógrafa, e Carol Aird (Cate Blanchett), uma dona de casa do subúrbio novaiorquino que está se divorciando e tem uma filha pequena. Duas mulheres, vivendo momentos muito diferentes de vida, se encontram em uma loja de departamentos onde Therese trabalha no momento e se apaixonam, num contexto contrário ao relacionamento delas.
Na primeira sequência, em que Carol convida Therese para visitar sua casa, tem uma cena em que o carro de Carol passa por um túnel. Nesse momento, o fluxo das imagens fica mais lento, na montagem há cortes das duas se olhando, como se aquele momento tivesse durado mais tempo do que provavelmente durou. Isso me transmite a sensação de suspensão do tempo, um momento que só as duas compartilham. Essa sensação ficou comigo ao longo do filme e me fez pensar em como o relacionamento delas só acontece em situações muito específicas, quando afastadas de suas vidas cotidianas. No caso da história de “Carol”, a relação efetivamente se desenvolve quando elas estão em trânsito, viajando juntas, até que a "realidade" as alcança.
No início do seu texto, Patricia White afirma que: "Como um conto pré Stonewall contado em uma era de igualdade no casamento por um autor queer especializado em pastiche cinematográfico, o filme em si é uma espécie de lesbian reverie" (p. 31). A definição de reverie, de acordo com o dicionário Oxford, se refere a alguém perdido nos próprios pensamentos de forma positiva, uma espécie de ‘sonhar acordado’. Nesse sentido, é válido apontar que boa parte da história é contada através de flashbacks sobre os acontecimentos, desde que Therese e Carol se conheceram até quando se separam. A impressão de suspensão de tempo faz sentido, quando lida como uma expressão subjetiva dos acontecimentos passados entre as personagens. As memórias nunca são exatas, assim como, são expressões afetivas do tempo passado. Diferente do livro, o filme apresenta o ponto de vista das duas personagens, e é possível perceber o quanto a relação foi um marco importante para ambas, com impactos diferentes em suas vidas individuais. Considero ser possível defender a ideia de que o estado de reverie se mantem, inclusive, nas cenas fora do flashback, já que muitas situações são resolvidas no filme a partir de uma troca de olhares, não de um diálogo. Também entendo que as influências visuais do filme corroboram com esta ideia.
Haynes dialoga com a produção fotográfica do período retratado, de fotógrafos de rua, algumas mulheres, mas, especialmente, com a obra de Saul Leiter. Considerando que Therese é uma fotógrafa (no filme, não no livro), esse elemento é fundamental para pensar não somente a visualidade fílmica, mas também como o diretor aborda a questão do olhar.
As imagens registradas através dos vidros embaçados, marco nas imagens de Leiter, assim como as personagens isoladas ou atrás de vidraças, dentro de carros ou na rua, constituem muitas das cenas do filme de Haynes. Na última vez em que vi o filme, percebi que, para mim, o visual corrobora com a noção de reverie, ou de representação subjetiva do tempo e da própria memória. É possível notar como esse tipo de cena aparece ao longo de todo o filme, um olhar/gaze que não está marcado por uma visão objetiva do que aconteceu. Outro aspecto importante relativo à fotografia que destaco é o uso de película 16 mm pelo diretor de fotografia Ed Lachman (parceiro constante de Haynes). Isso resulta em uma textura diferente da imagem em relação a filmes contemporâneos e, como revela o próprio Lachman em um texto para a Indiewire, ele buscou fazer uma referência ao tempo histórico imageticamente.
Por
último, acredito que Haynes também convida os espectadores a olhar para o
passado de modo diferente, sob o olhar de histórias muitas vezes não contadas,
muito menos pelos filmes hollywoodianos do período em que a história se passa.
Haynes torna texto o que por anos em Hollywood foi subtexto, o diretor apresenta
suas referências cinemáticas do passado com uma perspectiva atual sobre
relações e desejos possíveis, e com isso, pensa um presente e futuro diferentes
(White, 2002). Patricia White afirmou que “A atitude do filme para com o
passado não é nem indulgente nem triunfalista” (ibid, p. 34), Haynes não
dialoga com nostalgia pelo passado (inventado), algo muito presente no cinema
estadunidense. Ele olha para o passado para pensar em seus silêncios, sobre como
podemos repensar os dias de hoje a partir de questões que permanecem na
sociedade ao longo do tempo.
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