sábado, 31 de agosto de 2024

Decasia (Bill Morrison, 2003)


Assistir Decasia (2002) de Bill Morrison foi uma experiência muito particular, especialmente por pouco saber sobre o filme. Em tempos nos quais o digital domina as conversas sobre praticamente tudo que está a nossa volta, Morrison nos lembra de voltar a nossa atenção às materialidades que fazem parte da história do cinema, principalmente o filme em película. Decasia também nos remete às consequências diretas do esquecimento e descaso com esses materiais, os efeitos devastadores da ação do tempo na película e consequentemente na nossa memória cultural. No entanto, não entendo que o interesse de Morrison é apenas com a perda, sim, com as potencialidades desses materiais em condições inadequadas a uma projeção comum em uma sala de cinema.  

O autor Bernd Herzogenrath (2018), no livro que organizou sobre a obra de Bill Morrison, destacou a relação entre a película cinematográfica e o tempo. Penso que é exatamente esse o foco destacado por Morrison em Decasia, na medida em que aborda diretamente a possibilidade da perda, de determinadas películas serem atingida pela ação nociva do tempo, apresentando novas possibilidades de uso para ela. Como destaca o autor, o material fílmico está sujeito ao longo dos anos aos “sinais dos tempos”, seja do período em que foi projetado mas também do tempo em que ficou parado, guardado em algum lugar (em muitos casos, em condições não apropriadas de armazenamento deste tipo de material). Essas marcas ficam muito clara a cada sequência de Decasia, as imagens originalmente gravados em algum momento do início do século XX ganharam novas características. Assim como, uma nova vida no filme do diretor.

still do filme Decasia

Decasia é uma montagem feita de found-footage de filmes em várias estágios de decomposição” (Herzogenrath, 2018,  p.84). O filme estreou em um evento na Suiça em 2011 acompanhado por uma orquestra com a música composta por Michael Gordon (Betancourt, 2015). Só posso imaginar a oportunidade imersiva de assistir o filme dessa maneira, assim como, em uma sala de cinema. Não é um filme para acompanhar uma história com várias personagens, mas sim, acompanhar as imagens e o que estas podem nos comunicar. Não só através das características físicas modificadas da película, mas também observando como Bill Morrison se utiliza das mudanças físicas do material trabalhando diretamente com a montagem. 

Como é destacado no texto de Alexandre Costa e Miriam Mendes (2016), Decasia é um filme que oferece questionamentos sobre o tempo e a morte. Adicionaria nessa equação também o esquecimento, filmes perdidos no tempo, fragmentos de películas que talvez não foram arquivados inteiros, e principalmente, filmes que estão em estado de decomposição e deixarão de existir.  É possível pensar negativamente sobre a discussão apresentada por Morrison, mas o que ele faz em seus filmes, não somente em Decasia, é dar uma nova vida a esses fragmentos, coloca-los em contexto diferente do original. O que também estabelece uma nova relação o tempo.

"O filme é visto como uma representação do tempo - Decasia vai além ao focar na temporalidade do ou no material fílmico em si" (Herzogenrath, 2018, p.83). Relativo a essa questão, Bernd Herzogenrath entende que o filme de Morrison foi diretamente influenciado pelo cinema estadunidense experimental das décadas de 1960 e 1970, devido especialmente ao foco no material fílmico e na estrutura do filme em si. Uma outra questão relevante levantada pelo autor refere-se ao fato de que o diretor pouco tratou as sequencias do filme a fim de “melhorar” a imagem. Já que sua proposta era exatamente abordar os efeitos do tempo na película e o que a decomposição causa às imagens.

Para mim, o filme de Morrison foi uma experiencia sensorial única. Me fez pensar racionalmente sobre questões como restauração fílmica, arquivo, conservação, mas especialmente, me fez sentir esses dilemas através da montagem das sequencias.  Ela proporciona acompanhar o movimento entre as cenas de filmes diferentes, assim como, o movimento contido nos frames, causado pela própria decomposição da película.

De acordo com Costa e Mendes “... as imagens que compõem Decasia não são mais restos, mas fraturas que o tempo abre em interrupção. O salto de uma imagem a outra se dá pela sua desintegração, pelo entrelaçamento das ruínas que o tempo provoca sobre a película” (2016, p.268). Entendo que essa afirmação dos autores dialoga diretamente com o conceito utilizado por Herzogenrath (2018) sobre o cinema de Morrison, que é a “poética da ruína”. Este conceito, segundo o autor, relaciona-se a como o filme discute a historicidade do material em si, inclusive a própria noção de “mortalidade” da película, que pode perecer com o tempo.

Nesse sentido, Herzogenrath discorre sobre a relação entre o entendimento de ruína presente em Decasia e como a decomposição/destruição de um material o transforma em outro. O binário vida / morte é uma constante no filme e ele opera ao longo de todo o longa de Morrison. Nos lembrando que desse material que talvez muitos considerariam perdido e inútil, nasce algo novo. No contexto do cinema de Morrison vida e morte se alimentam para produzir uma discussão profunda sobre um elemento fundamental da história do cinema, que é o material que fez possível a magia que vivenciamos na sala escura.

Entretanto, é fundamental considerar uma questão colocada por Michael Betancourt (2015) em seu texto sobre o filme, Decasia é um filme sobre “um mundo em decadência”, afirmação que me fez pensar sobre aquilo que não existe mais, mas também aquilo que é conservado para que não se perca. Os fragmentos de filmes utilizados por Morrison são de nitrato, o que significa uma data específica dessas produções, marcando o início do século XX. Soma-se a isso, a dificuldade de preservação desses materiais. Filmes em nitrato não são mais produzidos desde a década de 1950, mas também existe os filmes/fragmentos que foram preservados ao longo da história. Mesmo com um mundo voltado para as tecnologias digitais, o material em película ainda resiste de algum modo, tanto na produção de alguns cineastas, como também no trabalho e pesquisa daqueles que se dedicam ao analógico.

Decasia é um ‘filme de terror’ em que o horror que apresenta como a corrupção imposta pelo tempo sobre as coisas que as pessoas criam é também parte inevitável do mundo em que vivemos” (ibid., s/p). Ao longo de todo o tempo somos lembrados dessa possibilidade, no entanto, a parte mais triste é que muito do que já perdemos da nossa memória cultural era evitável, fruto do descaso declarado à importância dessas obras de arte para a vida em sociedade. 


REFERÊNCIAS 

BETANCOURT, Michael. Dread Mechanics: The Sublime Terror of Bill Morrison's Decasia (2002) In Bright Lights Film Journal, 2015. 

COSTA, Alexandre Rodrigues da; MENDES, Miriam Aparecida. Além do acaso estúpido da química: o informe como manipulação do tempo em Decasia: the state of decay, de Bill Morrison In Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Rebeca), junho de 2016. 

HERZOGENRATH, Bernd. Decasia The Matter/Image: Film is also a Thing In  HERZOGENRATH, Bernd (ed.). The Films of Bill Morrison: aesthetics of the archive. Amsterdam University Press, 2018.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

A Festa e os Cães (Leonardo Mouramateus, 2015)

Quando eu estava na escola, no início dos anos 2000, eu tinha por costume levar uma câmera fotográfica no final do ano para a escola e fotografar amigas e a turma. Registros que ainda tenho e posso ter acesso sempre que quiser. Como parte de uma geração que vivenciou muitas mudanças tecnológicas, eu passei por um momento quando a máquina fotográfica analógica foi deixada na gaveta e substituída pela digital. Depois de anos notei uma consequência direta da mudança na minha prática do uso da câmera, pois eu deixei de manter esse ritual anual e, em consequência, não tenho registros de várias etapas e pessoas que passaram pela minha vida. Devido a isso, anos depois decidi imprimir algumas fotos de viagens e conservá-las em álbum. A máquina digital, e agora o celular, nos permitem tirar um número maior de fotografias, ainda mais se consideramos o valor financeiro do filme analógico. Porém, a relação que estabelecemos com as fotos em um álbum para com as fotos no HD me parecem muito diferente. E ainda devemos considerar que a possibilidade de perda dos arquivos é maior no campo digital.  

Essas reflexões e lembranças se deram depois de assistir o curta brasileiro “A Festa e os Cães”, um filme-ensaio autobiográfico do diretor Leonardo Mouramateus. Um dos filmes mais instigantes que assisti esse ano, não somente pelos temas que me tocaram pessoalmente, mas também pela maneira escolhida pelo diretor para contar a sua história.




O curta tem aproximadamente 25 minutos e durante quase todo esse tempo, no qual o próprio diretor rememora momentos com amigos, ele apresenta a narrativa através de fotografias. “Prevalece no filme, portanto, a paralisação e o congelamento da imagem fotográfica; em detrimento do movimento da imagem de cinema” (Almeida, 2017, s/p). Como afirmou Almeida, a sensação de movimento se dá com a troca das imagens e não com o movimento de câmera (como costumeiramente vemos nos filmes). A troca de fotografias é complementada com os relatos dos encontros e desencontros, amizades, festas e despedidas de um grupo de amigos em Fortaleza.

Durante os quase 25 minutos, a câmera fica parada em uma posição fixa na medida em que fotografias são apresentadas na frente do espectador. Essas fotografias, junto com uma narração, constroem a narrativa do protagonista (o próprio diretor), seus amigos e a relação com a cidade em que moravam. Expectativas de vida, amizades, mudanças, festas, amores, marcam o processo de amadurecimento dos personagens.  Na minha opinião, o fato da narração não ser somente do diretor (que traz seus amigos para também contarem as histórias) enriquece os temas apresentados e aproxima o espectador desse grupo de amigos, diferente do que seria se apenas ouvíssemos o relato do diretor.

O curta inicia com Mouramateus relatando que comprou uma câmera fotográfica durante as filmagens de um curta, e que a princípio pensava em registrar os bastidores. Sendo assim, os relatos são acompanhados pelas fotografias colocadas em frente à câmera. Após a finalização das filmagens, Mouramateus afirma que manteve a câmera na bolsa e começou a fotografar festas com amigos e a própria rua, mais especificamente os cães da sua rua. Os registros dos cães também são parte de um cotidiano específico relatado pelo diretor. Ele conta que os fotografava sempre ao retornar à noite para a casa, na rua escura, com muitos cachorros e barulhos de latidos.

Ao decidir fotografar também as festas com os amigos, Mouramateus registrou parte dos últimos meses na cidade em que vivia. E como ele mesmo afirma em sua narração, a câmera com 36 poses as vezes circulava pelas mãos das pessoas que estavam nas festas, o que garantia diferentes ângulos, inclusive, do próprio diretor em frente à câmera: “então comecei a achar que aquelas fotos, essas fotos, tiradas por nós, falavam um pouco mais do que só sobre festas e sobre cães”. Ele revela assim, não só as surpresas que surgiam com a revelação das fotos, aspecto inexistente quando lidamos com a máquina digital. Imagino tudo o que foi despertado ao ver as imagens e ao “reviver” as situações na memória.

Segundo o pesquisador Rafael Almeida (2017, s/p), “o uso da fotografia no cinema garante, então, a possibilidade da existência de um espectador pensativo, uma audiência que reflita sobre as imagens que vê. Isso se dá, essencialmente, pela mistura de dois tempos distintos: o do filme e o da fotografia”. Nesse sentido, vale destacar que as narrações não são descritivas, o que permite ao espectador também um diálogo mais direto com as imagens apresentadas, abrindo espaço para a imaginação agir, preenchendo as lacunas.

Entendo que a proposta temática do curta também tem uma natureza reflexiva. No entanto, isso é acentuado pelo aspecto formal, como o uso das fotografias e da narração, assim como, pela escolha do diretor de trazer seus amigos para conversar sobre as imagens. As imagens ali apresentadas, que despertam naquelas pessoas vivências e lembranças, para nós, do público, podem ser catalizadoras de memórias próprias, remetendo a vivências pessoais que se conectam aos temas explorados no filme. Se cenas que acontecem em meio a uma festa poderiam ser caracterizadas por serem dinâmicas e barulhentas, o fato do curta se utilizar apenas das fotografias e narrações, nos concede um espaço maior de reflexão. Assim como, a combinação de fotografias e narração nos possibilita imaginar os acontecimentos fora do quadro.

Na minha visão, o curta é marcado por um tom melancólico, referente à passagem do tempo, dos amigos que se mudaram de cidade ou país e das elucubrações sobre futuros possíveis. Um diálogo que é muito simbólico sobre os temas tratados no curta é quando uma amiga de Leonardo pergunta: “Leo, por que você tira tantas fotos minhas?”, “Vai ver eu gosto de te ver envelhecer”. A fotografia é apresentada como uma paralisação do tempo, mas, também, como um meio de registrar a sua passagem.

Leornardo Mouramateus está indo embora de Fortaleza e esse momento é registrado pela única cena em que não são apresentadas fotografias. O diretor está sentado em um quarto com um parente que fala sobre as marcas que sua ausência deixará. A cena me pareceu marcante, já que o filme também discute o vazio deixado pelos momentos que não voltam, as pessoas que se foram e pelas mudanças nas cidades que conhecemos.

Por último, o filme de Mouramateus me fez pensar na letra de uma banda que tenho escutado muito recentemente. A música se chama Photos From When We Were Young da banda estadunidense Nana Grizol:

I was looking at photos from when we were young
Your hair is light blue and you're smiling in one
And it's a strange remembrance brought on by this semblance
Oh, we were so serious, shy, inexperienced

Oh-so unsure of ourselves

Making mistakes without anyone's help
And I thought of the ways I remember you well

Some sweet recollection of redwoods and raspberry vines
Boys you wrote postcards to numerous times
The uncertainty then, like some sentence of sin
Punctuated by moments of tenderness
When there were long conversations, sharing of beds
Walks home from swimming pools
Giddy, impressionable, the distance grew up like the night
Decisions were silence or preemptive flight


O curta está disponível no vimeo do próprio diretor e você pode acessar através desse link https://vimeo.com/107410481. 

 

Referência

ALMEIDA, Rafael de. Do espectador pensativo à imagem pensativa: fotografia e filme-ensaio. Revista Famecos. Porto Alegre, v.24, n.2, maio, junho e agosto de 2017. 




domingo, 9 de junho de 2024

Carol (Todd Haynes, 2015)

Recentemente assisti o filme "Carol" novamente (pela décima vez, provavelmente). E é muito instigante quando a história de um filme, assistidos tantas vezes, apresenta novas questões a cada revisitação. Dessa vez, fiquei pensando em uma questão específica que ressoou com uma leitura que fiz logo depois, o texto de Patricia White, Lesbian Reverie: Carol in History and Fantasy que está no livro Reframing Todd Haynes: Feminism’s Indelible Mark, editado por Theresa L. Geller e Julia Leyda e lançado em 2022 pela Duke University Press.

Resumidamente, "Carol" (Todd Haynes, 2015), baseado no romance de Patricia Highsmith e roteirizado por Phyllis Nagy, conta a história de duas mulheres que se apaixonam na Nova York da década de 1950. Therese (Rooney Mara), uma jovem fotógrafa, e Carol Aird (Cate Blanchett), uma dona de casa do subúrbio novaiorquino que está se divorciando e tem uma filha pequena. Duas mulheres, vivendo momentos muito diferentes de vida, se encontram em uma loja de departamentos onde Therese trabalha no momento e se apaixonam, num contexto contrário ao relacionamento delas.

Na primeira sequência, em que Carol convida Therese para visitar sua casa, tem uma cena em que o carro de Carol passa por um túnel. Nesse momento, o fluxo das imagens fica mais lento, na montagem há cortes das duas se olhando, como se aquele momento tivesse durado mais tempo do que provavelmente durou. Isso me transmite a sensação de suspensão do tempo, um momento que só as duas compartilham. Essa sensação ficou comigo ao longo do filme e me fez pensar em como o relacionamento delas só acontece em situações muito específicas, quando afastadas de suas vidas cotidianas. No caso da história de “Carol”, a relação efetivamente se desenvolve quando elas estão em trânsito, viajando juntas, até que a "realidade" as alcança.

No início do seu texto, Patricia White afirma que: "Como um conto pré Stonewall contado em uma era de igualdade no casamento por um autor queer especializado em pastiche cinematográfico, o filme em si é uma espécie de lesbian reverie" (p. 31). A definição de reverie, de acordo com o dicionário Oxford, se refere a alguém perdido nos próprios pensamentos de forma positiva, uma espécie de ‘sonhar acordado’. Nesse sentido, é válido apontar que boa parte da história é contada através de flashbacks sobre os acontecimentos, desde que Therese e Carol se conheceram até quando se separam. A impressão de suspensão de tempo faz sentido, quando lida como uma expressão subjetiva dos acontecimentos passados entre as personagens. As memórias nunca são exatas, assim como, são expressões afetivas do tempo passado. Diferente do livro, o filme apresenta o ponto de vista das duas personagens, e é possível perceber o quanto a relação foi um marco importante para ambas, com impactos diferentes em suas vidas individuais. Considero ser possível defender a ideia de que o estado de reverie se mantem, inclusive, nas cenas fora do flashback, já que muitas situações são resolvidas no filme a partir de uma troca de olhares, não de um diálogo. Também entendo que as influências visuais do filme corroboram com esta ideia.

Haynes dialoga com a produção fotográfica do período retratado, de fotógrafos de rua, algumas mulheres, mas, especialmente, com a obra de Saul Leiter. Considerando que Therese é uma fotógrafa (no filme, não no livro), esse elemento é fundamental para pensar não somente a visualidade fílmica, mas também como o diretor aborda a questão do olhar.

As imagens registradas através dos vidros embaçados, marco nas imagens de Leiter, assim como as personagens isoladas ou atrás de vidraças, dentro de carros ou na rua, constituem muitas das cenas do filme de Haynes. Na última vez em que vi o filme, percebi que, para mim, o visual corrobora com a noção de reverie, ou de representação subjetiva do tempo e da própria memória. É possível notar como esse tipo de cena aparece ao longo de todo o filme, um olhar/gaze que não está marcado por uma visão objetiva do que aconteceu. Outro aspecto importante relativo à fotografia que destaco é o uso de película 16 mm pelo diretor de fotografia Ed Lachman (parceiro constante de Haynes). Isso resulta em uma textura diferente da imagem em relação a filmes contemporâneos e, como revela o próprio Lachman em um texto para a Indiewire, ele buscou fazer uma referência ao tempo histórico imageticamente. 

Por último, acredito que Haynes também convida os espectadores a olhar para o passado de modo diferente, sob o olhar de histórias muitas vezes não contadas, muito menos pelos filmes hollywoodianos do período em que a história se passa. Haynes torna texto o que por anos em Hollywood foi subtexto, o diretor apresenta suas referências cinemáticas do passado com uma perspectiva atual sobre relações e desejos possíveis, e com isso, pensa um presente e futuro diferentes (White, 2002). Patricia White afirmou que “A atitude do filme para com o passado não é nem indulgente nem triunfalista” (ibid, p. 34), Haynes não dialoga com nostalgia pelo passado (inventado), algo muito presente no cinema estadunidense. Ele olha para o passado para pensar em seus silêncios, sobre como podemos repensar os dias de hoje a partir de questões que permanecem na sociedade ao longo do tempo.

domingo, 31 de dezembro de 2023

Princess Cyd (Stephen Cone, 2017)

O diretor Stephen Cone é um cineasta que conheci durante a pandemia através da Mubi, quando o streaming colocou três filmes dele no catálogo: The Wise Kids (2011), Henry Gamble’s Birthday Party (2015) e Princess Cyd (2017). Os três são coming of age, histórias sobre crescimento, mudanças, em um período específico da vida, a adolescência. Todas as histórias envolvem discussões sobre queerness e relações queer. Todos os protagonistas dos filmes estão vivendo questões importantes, mudanças, descobertas, e em todos os casos a sexualidade é um dos elementos importantes na vida desses protagonistas. 

Os dois primeiros filmes mencionados se passam na Carolina do Sul, onde Cone passou sua infância, sendo filho de um pastor e convivendo no meio evangélico, e ambos refletem esse contexto. Como afirmou em uma entrevista, e é notório em seus filmes, o diretor representa esse universo religioso de forma complexa e repleto de nuances. Já Princess Cyd é um filme que se passa em Chicago, onde atualmente o diretor reside. Os três filmes me encantaram de modo diferente, mas em geral, gosto como Cone filma seus protagonistas, como ilumina utilizando uma luz quente, e como trata assuntos muito sérios de forma delicada. A questão da luz nos filmes citados chamou a minha atenção, principalmente, por ter assistido os três em maratona, e isso me fez notar algumas similaridades. Anos depois me deparei com uma entrevista do diretor para a Criterion, na qual ele fala sobre filmar no verão e utilizar a estação e suas luzes para contar suas histórias. Fez muito sentido para mim, não só pelo contexto no qual se passam as histórias, mas também, pela questão sensorial.
Dos três, Princess Cyd é o filme que mais gostei e mais assisti, foram quatro vezes. E gostaria de, aqui neste espaço, colocar em palavras os motivos pelos quais esse é um dos meus filmes queer preferidos dos últimos tempos. Considero que ele seja significativo por questões pessoais, mas também por me fazer pensar em coisas novas a cada vez que assisto. Quando se fala em filmes preferidos não me refiro necessariamente a qualidades formais, no entanto, considero Princess Cyd um excelente filme no que se propõe: roteiro bem escrito, elenco excelente, ótimos personagens e bem filmado.
Acredito que Princess Cyd é o tipo de filme que teve um efeito em mim similar a “Encontros e Desencontros” (Lost in Translation), da Sofia Coppola, muitos anos atrás, quando ainda era uma adolescente. Gosto das histórias, dos personagens, da trilha sonora, da maneira como é filmado, mas existe algo a mais, na maneira como as pessoas e as relações são apresentadas. E as respostas que encontram (não definitivas, pois isso não existe) para as dinâmicas de tais relações e certos obstáculos enfrentados pelas personagens.  Ambos são filmes que fizeram muito sentido para mim na época em que assisti (e a minha relação com o filme da Coppola já é longeva), e continuam ressoando com questões diferentes, não só me fazendo pensar no filme em si, mas nos motivos que fazem deles obras tão especiais para mim.
Princess Cyd inicia com uma tela preta em que só é possível escutar o som de uma ligação para a polícia. Vizinhos de uma casa escutaram tiros que deixaram vítimas fatais, e quando a operadora do telefone pergunta se tem alguém mais na casa, ele responde que somente uma menina. Com essa fala, a imagem abre para uma jovem adolescente, a protagonista da história, nove anos depois. Com essa cena, sabemos que a jovem Cyd (Jessie Pinnick), de 16 anos, presenciou algum evento traumático, que somente saberemos os detalhes mais para o final do filme.
A história envolve a relação da Cyd com sua tia Miranda (Rebecca Spence), irmã de sua mãe falecida, depois de anos sem se verem. No início do filme o pai de Cyd, liga para a Miranda, dizendo que sua relação com a filha está um pouco estremecida, e pede para Cyd ficar um tempo em sua casa, em Chicago, já que sua filha estaria considerando a cidade como possibilidade para universidade. Então, Cyd sai da Carolina do Sul, onde mora com o pai, e vai para Chicago passar algumas semanas com a tia. O filme foca nesse período, na relação entre as duas, e nas descobertas pessoais da própria protagonista e da tia. Mesmo que o foco seja a jovem, é muito interessante como esse momento retratado no filme é uma jornada das duas, individualmente e da relação entre elas.  
        Em uma entrevista, Stephen Cone descreve Princess Cyd como uma “carta de amor para Chicago” e tive essa impressão da relação do diretor com a cidade. Pela maneira que ele explora as paisagens e os lugares que os personagens frequentam, utilizando a mesma luz quente, representando a cidade como um espaço acolhedor. No caso, referente à história que ele está contando, acolhedor aos diversos personagens (e à diversidade) do filme. Entre restaurantes, cafés, feiras em bairros e praia, Chicago é uma cidade que trata bem os diversos personagens em cena.
Miranda Ruth, a tia de Cyd, é uma escritora e intelectual, que não vê sua sobrinha há muitos anos. E o estranhamento entre elas fica estabelecido logo no início, quando Miranda apresenta o quarto onde Cyd irá ficar, o quarto que teria sido de sua mãe, e menciona que é um ótimo lugar para a leitura. Logo, a sobrinha responde que não gosta de ler e pede a senha do wifi. A cena tem um detalhe engraçado, já que a senha da internet faz referência ao escritor Nathaniel Hawthorne, sobre quem Miranda fala de forma empolgada, enquanto sua sobrinha parece não se importar muito.
            Numa parcela do filme, o tom da conversa entre as duas é um pouco assim. Existe um esforço de conversa, mas o estranhamento toma um espaço maior entre os diálogos. Nesse sentido, gosto de como Stephen Cone apresenta isso através do enquadramento de ambas, como, por exemplo, na primeira refeição, com a câmera afastada e as duas no fundo do quadro. Na medida em que as duas vão se aproximando, isso se reflete na forma como elas são apresentadas no quadro, as duas juntas, conversando e interagindo.
            Outra questão é que a aproximação não se refere a interesses mútuos por alguma coisa. Mas sim, a relação entre as duas se desenvolve na medida em que se estabelece um respeito mútuo, principalmente por parte de Cyd, que como adolescente às vezes se coloca diante de questões da vida sem muito espaço para nuances. Nesse sentido, destaco também as atuações. Jessie Pinnick interpreta uma adolescente que aparentemente não está muito interessada em escutar, sendo assim, ela fala muito, fazendo inclusive várias perguntas para a tia, mas normalmente interrompe a fala de Miranda sem a deixar responder. Por outro lado, Miranda apresenta suas falas de forma mais tranquila, pensando ao elaborar suas respostas para a sobrinha, mas até uma parte do filme é pouco ouvida.
           Essa dinâmica vai se modificando ao longo do filme até o meio em que tem uma cena (para mim, a melhor do filme) na qual finalmente Cyd escuta sua tia e não a interrompe. É uma cena central, em que Cyd conhece vários amigos da tia, que vão em sua casa para ler textos, conversar, comer, compartilhar um amor pela troca literária e intelectual com outras pessoas. Ao final, Cyd se coloca de forma muito direta sobre o que ela entende da vida da tia e elas tem um diálogo muito honesto, que entendo como o momento de virada na relação das duas, quando efetivamente a ligação entre tia e sobrinha se concretiza.
Gosto como o filme representa essa adolescente um pouco intransigente, que enxerga o mundo de uma maneira muito simplista, ingênua por vezes. Sua viagem à Chicago é um momento importante de amadurecimento, de conhecer pessoas com vidas diferentes da sua, inclusive, sua própria tia. Também acho importante que o filme apresenta como a sobrinha impacta a vida pessoal da tia, fazendo-a repensar sobre algumas questões, e suas vidas serão melhores depois desse encontro. A ida de Cyd à Chicago foi importante para além de pensar em um possível futuro no qual estudaria em uma universidade da cidade. Mas sim, para desfazer algumas certezas do presente, em relação à sua sexualidade, relacionando-se com a personagem Katie (Malic White) no período em que esteve na cidade e também a sua história de família, desenvolvendo uma relação nova com sua tia.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Sobre um western queer

 

Há algum tempo tenho uma relação ambígua com o cineasta espanhol Pedro Almodóvar. O filme que me fez repensar a relação com as suas obras foi “Amantes Passageiros” (Los Amantes Pasajeros, 2013). Não gostei do filme, do tipo de humor, especificamente de alguns momentos construídos como cômicos e que entendo como ofensivos. É claro que podemos assistir algum filme de um cineasta favorito, não gostar, e continuar admirando-o. No meu caso, nem se trata de não admirar, o seu potencial como contador de histórias e criador de mundos é inquestionável, mas me refiro mais ao sentido de que determinado cineasta não fala mais tão diretamente a pessoa que você é no momento. Acredito que isso faz parte do desenvolvimento processual de quem se é. Alguns diretores e diretoras continuam com você por toda a vida, outros serão marcantes apenas em alguns momentos específicos, mesmo que você continue apreciando seu trabalho ao longo da vida.

Muitos dos filmes de Almodóvar que marcaram minha adolescência e o início da vida adulta eu não reassisti, e algum dia pretendo fazê-lo. Dos seus últimos filmes, “Dor e Glória” (Dolor y Gloria, 2019) é um dos meus preferidos. Tudo isso para dizer que assisti sua última produção, o curta Strange Way of Life e não gostei.

Fiquei pensando se era uma questão do estilo não me agradar ou por algumas coisas realmente não funcionaram para mim. Nesse sentido, inicialmente gostaria de descartar a questão do estilo. Almodóvar sabe filmar e transmitir emoções através das imagens, sempre gostei do modo como utiliza as cores, cria seus personagens, e tudo isso continua me encantando. Na verdade, o que realmente me incomodou no filme foi o roteiro e as atuações.

O curta Strange Way of Life é um western que retrata o reencontro de dois ex amantes após vinte e cinco anos separados, o pistoleiro Silva (Pedro Pascal) e o xerife e ex pistoleiro Jake (Ethan Hawke). O filme estreou no Festival de Cannes desse ano e concorreu a melhor curta no prêmio Queer Palm. Foi produzido pela Saint Laurent Productions e foi o segundo filme realizado originalmente em inglês pelo cineasta. Pouco nos é contado sobre os personagens, Silva e Jake no momento em que se conheceram viviam uma vida de foras-da-lei e anos depois Jake mudou sua vida e se tornou xerife. O personagem interpretado por Hawke apresenta aquela mudança como definidora de quem ele é e nada poderá comprometer aquela decisão, nem mesmo seu possível amor por Silva. No decorrer da história, essa firmeza em suas decisões é testada.

O filme começa ao som de “Estranha Forma de Vida”, na voz de Caetano Velloso, alguém que não é estranho às trilhas de Almodóvar. A imagem abre em um típico plano aberto de western em uma paisagem desértica, com o personagem de Pascal galopando até a cidade onde encontrará Jake. Quando chega à cidade, o ator espanhol Manu Ríos (que faz lip sync da música) está com um violão e cantando, recebendo o personagem na cidade. A música, além estabelecer uma atmosfera para o futuro encontro, já anuncia de uma certa forma ao que aqueles dois personagens estão fadados. Talvez seja uma das minhas cenas preferidas do curta.

Nas primeiras cenas em que Jake aparece, ficamos sabendo da morte de alguém e que existe um suspeito na cidade, um suspeito que na metade do curta é nomeado como o filho de Silva. No momento em que Jake e Silva se reencontram, o filme desenrola para nos mostrar que o amor/desejo que foi deixado de lado por anos ainda está presente, e que aparentemente Jake reprimiu essas memórias. O curta não me convenceu da relação, por talvez pela falta de química entre os atores. A dinâmica das cenas entre os dois, o modo como são enquadrados, me transmitiu uma certa artificialidade que não condiz com os sentimentos demostrados através dos diálogos. Se fosse destacar um elemento positivo, seria a construção do cenário, especialmente a casa do Jake (e posteriormente a casa do filho de Silva) e, nesse sentido, vale prestar atenção nos quadros pendurados nas paredes.

Quando Jake suspeita do real motivo do retorno de Silva, o de defender seu filho, eles se separam e cada um vai à procura do suspeito de matar a esposa do irmão do xerife. Nessa cena, acontece um flashback, de provavelmente vinte e cinco anos atrás, quando os dois ainda eram pistoleiros. Se você for na página do filme no IMDB encontrará a indicações de vários westerns a que Almodóvar teria feito referência e teria se inspirado, porém, a cena do flashback me fez pensar diretamente em uma famosa cena de “Rio Vermelho” (Red River, 1948), de Howard Hawks.

No documentário The Celluloid Closet, baseado no estudo clássico de Vito Russo, sobre as representações queer no cinema estadunidense, da primeira metade do século XX, uma das cenas destacadas é a do filme de Hawks, entre os personagens interpretados por Montgomery Clift e John Ireland. Na cena, os dois personagens comparam suas armas, um pegando na arma do outro e depois atirando em uma lata de metal. Essa é a descrição literal da cena, e em 1948 nada poderia acontecer além disso, mas as leituras de subtexto são possíveis. Quando assisti o curta de Almodóvar, a cena do flashback me pareceu essa cena e o que ela poderia ter sido se não fosse de um filme de 1948, sob a censura do Código Hays.

Além das atuações, o roteiro também foi um destaque negativo para mim. Primeiramente, eu não gostei de vários diálogos, principalmente da primeira cena entre os dois personagens, no início do curta. Mas o que realmente me incomodou foi o excesso de conflitos entre os personagens e o pouco tempo para desenvolvê-los. Admito que em Madres Paralelas, seu filme de 2021, também senti o mesmo tipo de incomodo e, nesse caso, estamos falando de um longa. O que me faz pensar que, no momento que resolver rever a filmografia de Almodóvar, vou prestar atenção no modo como ele constrói seus roteiros, mas, nesse momento, só posso falar sobre o que a minha memória permite.

Tudo que envolveu o filho de Silva no filme me pareceu deslocado com a história do curta. Somente o reencontro deles, todos os anos de separação, mais anos de sentimentos reprimidos, me parecia uma história e tanto para ser contada (e todos esses elementos estão ali). No fim, sabemos pouco sobre tudo isso. Inclusive, a própria cena do flashback, e quando ocorre, me pareceu estranha. Com a informação que temos a partir de um diálogo, o filho de Silva está na cidade de Jake, e por isso, não entendi aquele longo deslocamento a cavalo, com a necessidade de uma noite no deserto, para justificar a existência do flashback. Aliás, se você deseja tanto avisar seu filho que ele será preso, e sabe que está sendo seguido, por que parar e dormir para dar tempo àquele que te segue?

Eu fiquei querendo saber mais sobre os personagens, mas não por querer um longa-metragem, sim, por que se a história deles tivesse sido o foco, os trinta minutos seriam suficientes. Admito que fiquei decepcionada. Acredito que há muitas histórias que podem ser contadas sobre as vivências queer e marginais nos filmes de western, seja em filmes que se passam no século passado ou no contexto contemporâneo, já que o gênero ainda é utilizado para contar o mesmo tipo de histórias com os mesmos tipos de personagens, embora com algumas mudanças. Creio que as explorações do gênero por Kelly Reichardt em “O Atalho” (Meek’s Cutoff, 2010) e First Cow (2019), Chloe Zao em “Domando o Destino” (The Rider, 2017) e Jane Campeon, em “Ataque dos Cães” (The Power of the Dog, 2021), contribuíram recentemente para ressignificar um espaço narrativo muito dominado por histórias que reafirmam não só um ideal de virilidade heteronormativa, mas também colonial. O gênero se beneficiaria com explorações mais diversificadas, inclusive para trazer e incluir debates que já acontecem em discussões/estudos sobre o passado colonial estadunidense.


terça-feira, 23 de maio de 2023

Sobre algumas adaptações de James Cain para o cinema

No ano passado assisti alguns filmes do diretor alemão Christian Petzold. Um deles foi Jerichow, de 2008. Este filme é uma adaptação do romance The Postman Always Rings Twice, do autor estadunidense James Cain. Ele me fez pensar, dentre outras coisas, no contínuo interesse por esse livro, de 1934. O filme de Petzold faz parte de muitas adaptações, inclusive europeias. Apesar de algumas mudanças na história, os personagens envolvidos no triângulo amoroso e os principais temas da obra permanecem o mesmo.  A adaptação de 2008 faz escolhas interessantes para não responder a todas as perguntas, o que também acontece em outros filmes do diretor. Isso amplia, na minha percepção, a atmosfera de mistério, contribuindo para que o filme seja instigante, além de elementos visuais e do próprio elenco, que são excelentes. 

         A primeira adaptação do romance de Cain foi feita na Europa e somente em 1946 ganhou uma adaptação nos Estados Unidos. O livro de Cain, lançado em 1934, foi sucesso de público e logo teve seus direitos comprados por Hollywood, no entanto, seu conteúdo foi considerado excessivo para os padrões morais do Código de Produção, vigente desde 1934. Segundo Robert Sklar (1992), em seu livro City Boys, uma das primeiras ações de Joseph Breen, em 1934, como diretor da Production Code Administration (que controlava a aplicação do Código de Produção ou Código Hays), foi impedir possibilidades do romance ganhar uma adaptação para o cinema. A MGM adquiriu os direitos por 25 mil dólares e esperou 10 anos para realizar o filme.    
       A primeira adaptação do livro foi dirigida pelo francês Pierre Chenal, intitulada “Paixão Criminosa” (Ler Dernier Tournant, 1939). Quatro anos depois o livro ganhou outra adaptação, dirigida pelo italiano Luchino Visconti, intitulada “Obssessão” (Ossessione, 1943). Ambas as versões não foram autorizadas, segundo Robert Sklar (1992). Nos Estados Unidos, a primeira é a dirigida por Tay Garnett, em 1946, com o mesmo nome do livro. Em 1981 o livro ganhou outra adaptação nos Estados Unidos, dirigida por Bob Rafaelson, com Jack Nicholson e Jessica Lange nos papeis principais. Pesquisando sobre as adaptações descobri que existe também uma versão húngara, lançada em 1998, chamada Szenvedély, do diretor György Fehér.
           A versão de Garnett pela MGM foi precedida nos EUA por duas adaptações de outros livros de Cain, em diferentes estúdios. “Pacto Sinistro” (Double Indemnity, 1944) pela Paramount e Mildred Pierce (1945) pela Warner Bros. Assim como demorou dez anos para que a MGM filmasse o livro em função do Código de Produção, a Paramount demorou oito anos para filmar “Pacto Sinistro” pelos mesmos motivos, mesmo tendo os direitos desde 1935 (MAYER, 2013).    
         Em relação à “Pacto Sinistro”, James Cain seria o roteirista, porém, ele estava contratado por outro estúdio e não pode participar da produção. O escritor Raymond Chandler foi chamado e escreveu o filme juntamente com Wilder, que também o dirigiu (NAREMORE, 2008). Os dois romances têm elementos similares, como os temas explorados: traição, desejo, ganância, e o que os personagens estão dispostos a fazer para ter o que desejam. Nos dois casos, como uma boa história noir, esses desejos não se realizam. Iniciamos as duas histórias sabendo que tudo vai dar errado, mas a narrativa está mais interessada em nos mostrar como esses personagens chegaram a tal ponto, e não quem é o culpado de tal crime (pois esta resposta já sabemos).
           O filme “O Destino Bate sua Porta”, de 1946, roteirizado por Harry Ruskin e Niven Busch, conta a história de Frank Chambers (John Garfield) um andarilho que encontra um refúgio temporário em um bar de estrada, cujos donos são Nick Smith (Cecil Kellaway) e sua esposa Cora Smith (Lana Turner). Ao longo da história, Frank e Cora se apaixonam e planejam o assassinato de Nick. Comparado às outras duas adaptações de Hollywood mencionadas, considero esse o filme mais fraco. Na minha opinião, sua força principal reside nas atuações de Garfield e Turner e a química entre os dois.
Em 1945, o ator John Garfield, ainda contratado pela Warner, foi emprestado para a MGM para fazer dois filmes, o primeiro a adaptação do livro de Cain (SKLAR, 1992). Ele é um dos meus atores preferidos do período. Sua carreira no cinema começou na década de 1930 e terminou abruptamente com sua morte aos 39 anos, em 1952. Garfield ficou marcado por papéis em filmes de crime e noir, nos quais interpretava o cara durão, que provavelmente encontraria o pior dos destinos no final da história.  Ainda tenho várias lacunas para preencher de sua filmografia, mas gostaria de destacar duas das minhas atuações preferidas do ator, em “Corpo e Alma” (Body and Soul, 1947), dirigido por Robert Rossen, e “Força do Mal” (Force of Evil, 1948), dirigido por Abraham Polonsky.
Lana Turner é uma atriz que conheço pouco, mas sua versão de Cora Smith é marcante. O filme de Tay Garnett foi lançado no mesmo ano de outros filmes com femme fatales icônicas do cinema noir, como “Gilda”, com Rita Hayworth, “À Beira do Abismo”, com Lauren Bacall, e “O Tempo Não Apaga”, com Barbara Stanwyck. Em um vídeo do canal Be Kind Rewind, sobre a categoria Melhor Atriz no Oscar de 1947, ano em que Olivia de Havilland foi a vencedora, a autora do canal menciona o fato de que nenhuma dessas atuações foram nem indicadas ao Oscar, mesmo que possivelmente merecedoras, e que existia um certo preconceito com os filmes mencionados acima, sendo os melodramas mais considerados pela academia. E como ela pontua no vídeo, é preciso considerar o tipo de personagem que essas atrizes estavam interpretando nos filmes mencionados e quais estavam sendo celebrados. 
A comparação entre essas várias adaptações em culturas e contextos histórias diferentes é um tema para outro texto, porém, me parece instigante, ainda mais conectando a esse contínuo interesse por esse livro de 1934. Acho fascinantes os diferentes lugares que uma história pode alcançar, correspondendo a expectativas e anseios diversos, mas, antes de tudo, refletindo uma conexão que sentimos ao ler um bom livro e ver um bom filme. 


Referências:

Mayer, Geoff. Film Noir and Studio Production Practices In SPICER, Andrew; HANSON, Helen (edited by). A Companion to Film Noir. Sussex: Wiley Blackwell, 2013.

NAREMORE, James. More Than Night: Film Noir in its contexts. University of California Press: Berkeley, Los Angeles, Londres, 2008.

SKLAR, Robert. City Boys: Cagney, Bogart, Garfield. New Jersey: Princeton University Press, 1992


quinta-feira, 13 de abril de 2023

Livro: "The Lady From the Black Lagoon" de Mallory O'Meara


Minha ideia com o blog não é somente escrever sobre filmes em si, mas também sobre o que pode ter conexão com o universo cinematográfico. De tempos em tempos quero escrever sobre livros que li, sejam eles de cunho teórico, histórico ou até mesmo ficcional. Dito isso, resolvi escrever algumas palavras sobre um dos livros mais legais que li no ano passado, The Lady from the Black Lagoon: Hollywood Monsters and the Lost Legacy of Milicent Patrick, escrito por Mallory O’Meara. Eu li no original mas esse livro foi publicado no Brasil, em 2022, como "A Dama e a Criatura", pela editora DarkSide Books.

Publicado em 2019, o livro conta a história da artista Milicent Patrick e sua criação mais famosa, o design do monstro de “O Monstro da Lagoa Negra” (Creature From the Black Lagoon, 1954) dirigido por Jack Arnold. No entanto, esse legado lhe foi negado por muito tempo já que seu nome, além de não constar nos créditos, foi apagado da história do filme, mesmo sendo ela a criadora do design da criatura. O livro me atraiu por dois motivos. Primeiro, porque me interesso pela história de mulheres que trabalham/trabalharam na indústria cinematográfica, não somente diretoras ou atrizes, e também porque o filme de Arnold é um dos meus filmes preferidos e o meu preferido dentre os monstros da Universal.
O’Meara conta toda a história de Milicent Patrick, sua vida pessoal e sua trajetória profissional. Patrick foi uma das primeiras mulheres animadoras da Disney, trabalhou em longas como “Fantasia” (1940) e foi a primeira mulher a trabalhar em um departamento de efeitos especiais em maquiagem. No caso do filme de Arnold e especificamente sobre o monstro, Patrick foi a pessoa que fez o design e Chris Mueller foi o escultor. Segundo a autora, no período do filme não era comum artistas individuais de efeitos especiais serem mencionados nos créditos dos filmes, normalmente quem aparecia era o do coordenador do departamento de maquiagem. No entanto, o trabalho de Mueller foi reconhecido em textos sobre o filme, diferente de Patrick.
Gostei do livro de O’Meara por vários motivos. Ao escrever a biografia de Patrick a autora também discute sobre a importância de trazer a tona o trabalho de mulheres esquecidas ao longo da história de Hollywood e do cinema de forma geral.  Sua proposta de texto não é apenas a de contar a história da artista mas também seu processo de pesquisa e de como se relaciona pessoalmente com o tema e sua personagem principal. O estilo de O’Meara nem sempre funcionou para mim, mas isso é mais uma questão pessoal. A autora escreve sobre questões fundamentais, não somente quando pensamos na história do cinema, mas também em tantas vezes que histórias são relegadas ao silenciamento por motivos que podem se relacionar com misoginia, homofobia, racismo...
Para os que buscam exclusivamente um livro sobre o filme de Arnold, o livro de O'Meara não é (talvez) o mais indicado. No entanto, para qualquer fã do filme entendo como fundamental conhecer a história da artista que tornou "a criatura" possível da maneira que conhecemos hoje. Gosto do tom pessoal do livro e como simultaneamente conhecemos a artista e a autora do livro. Acredito que qualquer pessoa conectada intensamente com o cinema poderá se identificar com o modo como a autora fala sobre o filme e cinema de forma geral. 




segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Directed by John Ford (Peter Bogdanovich, 2006)

       Um dos livros que estou lendo atualmente é “O Cinema no Século”, uma coletânea do escritor brasileiro Paulo Emiílio Salles Gomes, lançada pela Companhia das Letras. Alguns destes textos são sobre o diretor estadunidense John Ford. Em um deles, de 1941, que analisa o filme Tobacco Road do mesmo ano, Salles Gomes, na página 95, faz uma consideração que me deixou pensativa sobre a minha própria experiência assistindo os filmes de Ford: 


A apresentação de Tobacco Road significou para nós o fortalecimento de uma probabilidade reconfortante – John Ford poderá nos enviar filmes mais ou menos bons, ou mesmo maus, mas de qualquer maneira cremos que será difícil que surja, com a responsabilidade de sua assinatura, um filme vulgar. Isso nos leva imediatamente a uma outra consideração – não é possível assistir uma só vez a um filme de John Ford.

Estou longe de completar a extensa filmografia de Ford, mas essa afirmação me parece fazer jus a tudo que assisti dele. E como todo excelente diretor, rever suas obras é fundamental. Não somente para melhor apreciar os elementos formais, mas também para compreender mais profunda e criticamente os temas, contextos e personagens, que o diretor explora em suas histórias. Semana passada tive a oportunidade de assistir o documentário Directed by John Ford, de Peter Bogdanovich, e senti a necessidade de escrever sobre os meus sentimentos conflitantes, não somente sobre o documentário, mas também sobre John Ford. Cada vez entendo como fundamental sermos críticos também com artistas e obras que admiramos, e entender que sentimentos diferentes sobre algo podem coincidir.  
        A versão original do documentário é de 1971, no entanto, assisti a versão revisada, lançada em 2006, com entrevistas adicionais de diretores contemporâneos falando sobre o impacto da obra de Ford. Para os interessados em história do cinema é um filme importante, como os que Martin Scorsese fez sobre cinema estadunidense e cinema italiano, e independente da sua opinião sobre a obra de Ford, a influência desse diretor, principalmente, no contexto dos EUA, é inegável.
Penso que a adição de entrevistas com diretores contemporâneos enriquece a discussão sobre os principais temas explorados por Ford, e também sobre o impacto no cinema do país, através de entrevistas com diretores como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Walter Hill e Clint Eastwood. As realizadas com atores que trabalharam com Ford, como John Wayne, James Stewart e Henry Fonda, se destacam por revelarem suas experiências na relação com o próprio diretor e como eram os sets de filmagem. Não assisti a versão de 1971, mas a que assisti traz um balanço interessante dos que conviveram com Ford, além dos que se inspiraram na sua obra posteriormente e ainda fazem filmes. O filme de Bogdanovich faz uma boa companhia a um filme lançado também em 1971, The American West of John Ford, dirigido por Denis Sanders (os entrevistados do período são basicamente os mesmos).
É possível que uma das partes mais conhecidas do filme seja quando Peter Bogdanovich entrevista o próprio Ford, com uma bela paisagem de deserto compondo o cenário, e o diretor não parece estar muito entusiasmado (para dizer o mínimo) em responder as perguntas. Em várias ocasiões Ford rebate com respostas monossilábicas, e talvez a reação inicial de quem está assistindo seja a risada, mas na realidade, imagino que nenhuma pessoa gostaria de estar na pele do Bogdanovich naquele momento. 
Apesar de ter gostado muito do documentário acho válido apontar algumas questões que me incomodaram ao longo do filme. Primeiramente, a falta de qualquer criticidade sobre a obra de Ford, principalmente de diretores contemporâneos entrevistados para a versão revisada, assim como do próprio diretor responsável pelo documentário. É por isso que gosto mais de documentários no formato do Bergman: a year in a life (Jane Magnusson, 2018), em que apresenta o diretor sueco como artista e também como uma pessoa repleta de contradições (e as duas partes caminhando juntas).
Em um ponto do documentário é apresentada a relação de John Ford com a história estadunidense, nomeando os inúmeros filmes que representaram momentos diferentes da história do país (alguns ainda não assisti). Nesse sentido, gostaria de destacar duas falas que me chamaram a atenção: a primeira é quando Clint Eastwood afirma que John Ford "não foi influenciado por uma geração do politicamente correto" e por isso teria espaço para abordar certos temas da maneira que quisesse. É possível que Eastwood estivesse se referindo à representação da colonização do Oeste como uma grande narrativa de pessoas brancas e os povos originários relegados a vilões dessa história. No entanto, essa fala soa “engraçada” se pensarmos na censura que marcou a Hollywood com o Código Hays (que durou de 1934 a 1968), período em que muitos diretores e diretoras tiveram seus trabalhados controlados/censurados.  
A outra fala foi a de Spielberg, que afirmou que John Ford foi um dos diretores estadunidenses mais patrióticos. Não sei exatamente o que ele quis dizer com isso: seria por Ford ter um interesse profundo pela história de seu país? Nesse sentido, nos cabe refletir sobre as narrativas apresentadas por Ford em seus filmes e a forma da apresentação da história dos EUA, especificamente sobre o período da formação nacional. A afirmação de Spielberg me parece um tanto problemática. E vale dizer que nenhuma dessas falas foi contestada ou foi apresentado algum tipo de contraponto.
Que John Ford apresentou ao longo de sua carreira um interesse profundo sobre o passado estadunidense, isso não há dúvida. É importante afirmar que esse interesse não se limita a filmes de faroeste (vale lembrar de filmes como “A Mocidade de Lincoln”, de 1939). No entanto, é válido (e necessário) questionar de que maneira Ford discute sobre esse passado, quem são os personagens e narrativas que considera relevantes. Entendo que pelo tamanho (de importância e quantidade) da obra do diretor seria fundamental tais questionamentos aparecerem, principalmente, em um documentário relançando em 2006. No contexto estadunidense, os debates que problematizaram o avanço e colonização do Oeste, apontando os elementos de genocídio das populações originárias, por exemplo, não era um debate novo em 2006. 
Desta forma, me parece que ainda uma boa parte de artistas/cineastas opta por uma romantização da violência do período em uma saga protagonizada por pessoas brancas com uma lógica de bons x maus, o que torna extremamente difícil debater a história de modo complexo. Sendo assim, é difícil não lembrar da afirmação do jornalista no final de “O Homem que Matou Facínora” (John Ford, 1962), que sempre me pareceu uma maneira do próprio Ford pensar sobre a sua obra, de mais de 100 filmes.   

“Este é o Oeste, senhor. Quando a lenda se torna fato, imprima a lenda”


Referências 


- texto "Tobacco Road" de Paulo Emilio Salles Gomes em "O Cinema no Século" (Companhia das Letras, 2015)


Outros links:

*vídeos que achei interessante compartilhar sobre John Ford e alguns temas em discussão (infelizmente alguns são em inglês sem legenda):

1939: Stagecoach - How John Ford saved the Western

A sutileza de John Ford

O Homem que Matou o Velho Oeste - uma discussão muito interessante sobre o filme "O Homem que Matou o Facínora".

Reel Injun (trailer) - documentário sobre a representação dos povos originários no cinema estadunidense / hollywoodiano. Propõe questões importantes para que possamos assistir filmes como os de John Ford de forma mais crítica. 

Directed By John Ford - mini documentário sobre o diretor feito pela TCM com afirmações um tanto romantizadas mas é interessante por contar um pouco sobre Ford e ter falas do próprio diretor sobre seus filmes. 

Decasia (Bill Morrison, 2003)