domingo, 31 de dezembro de 2023

Princess Cyd (Stephen Cone, 2017)

O diretor Stephen Cone é um cineasta que conheci durante a pandemia através da Mubi, quando o streaming colocou três filmes dele no catálogo: The Wise Kids (2011), Henry Gamble’s Birthday Party (2015) e Princess Cyd (2017). Os três são coming of age, histórias sobre crescimento, mudanças, em um período específico da vida, a adolescência. Todas as histórias envolvem discussões sobre queerness e relações queer. Todos os protagonistas dos filmes estão vivendo questões importantes, mudanças, descobertas, e em todos os casos a sexualidade é um dos elementos importantes na vida desses protagonistas. 

Os dois primeiros filmes mencionados se passam na Carolina do Sul, onde Cone passou sua infância, sendo filho de um pastor e convivendo no meio evangélico, e ambos refletem esse contexto. Como afirmou em uma entrevista, e é notório em seus filmes, o diretor representa esse universo religioso de forma complexa e repleto de nuances. Já Princess Cyd é um filme que se passa em Chicago, onde atualmente o diretor reside. Os três filmes me encantaram de modo diferente, mas em geral, gosto como Cone filma seus protagonistas, como ilumina utilizando uma luz quente, e como trata assuntos muito sérios de forma delicada. A questão da luz nos filmes citados chamou a minha atenção, principalmente, por ter assistido os três em maratona, e isso me fez notar algumas similaridades. Anos depois me deparei com uma entrevista do diretor para a Criterion, na qual ele fala sobre filmar no verão e utilizar a estação e suas luzes para contar suas histórias. Fez muito sentido para mim, não só pelo contexto no qual se passam as histórias, mas também, pela questão sensorial.
Dos três, Princess Cyd é o filme que mais gostei e mais assisti, foram quatro vezes. E gostaria de, aqui neste espaço, colocar em palavras os motivos pelos quais esse é um dos meus filmes queer preferidos dos últimos tempos. Considero que ele seja significativo por questões pessoais, mas também por me fazer pensar em coisas novas a cada vez que assisto. Quando se fala em filmes preferidos não me refiro necessariamente a qualidades formais, no entanto, considero Princess Cyd um excelente filme no que se propõe: roteiro bem escrito, elenco excelente, ótimos personagens e bem filmado.
Acredito que Princess Cyd é o tipo de filme que teve um efeito em mim similar a “Encontros e Desencontros” (Lost in Translation), da Sofia Coppola, muitos anos atrás, quando ainda era uma adolescente. Gosto das histórias, dos personagens, da trilha sonora, da maneira como é filmado, mas existe algo a mais, na maneira como as pessoas e as relações são apresentadas. E as respostas que encontram (não definitivas, pois isso não existe) para as dinâmicas de tais relações e certos obstáculos enfrentados pelas personagens.  Ambos são filmes que fizeram muito sentido para mim na época em que assisti (e a minha relação com o filme da Coppola já é longeva), e continuam ressoando com questões diferentes, não só me fazendo pensar no filme em si, mas nos motivos que fazem deles obras tão especiais para mim.
Princess Cyd inicia com uma tela preta em que só é possível escutar o som de uma ligação para a polícia. Vizinhos de uma casa escutaram tiros que deixaram vítimas fatais, e quando a operadora do telefone pergunta se tem alguém mais na casa, ele responde que somente uma menina. Com essa fala, a imagem abre para uma jovem adolescente, a protagonista da história, nove anos depois. Com essa cena, sabemos que a jovem Cyd (Jessie Pinnick), de 16 anos, presenciou algum evento traumático, que somente saberemos os detalhes mais para o final do filme.
A história envolve a relação da Cyd com sua tia Miranda (Rebecca Spence), irmã de sua mãe falecida, depois de anos sem se verem. No início do filme o pai de Cyd, liga para a Miranda, dizendo que sua relação com a filha está um pouco estremecida, e pede para Cyd ficar um tempo em sua casa, em Chicago, já que sua filha estaria considerando a cidade como possibilidade para universidade. Então, Cyd sai da Carolina do Sul, onde mora com o pai, e vai para Chicago passar algumas semanas com a tia. O filme foca nesse período, na relação entre as duas, e nas descobertas pessoais da própria protagonista e da tia. Mesmo que o foco seja a jovem, é muito interessante como esse momento retratado no filme é uma jornada das duas, individualmente e da relação entre elas.  
        Em uma entrevista, Stephen Cone descreve Princess Cyd como uma “carta de amor para Chicago” e tive essa impressão da relação do diretor com a cidade. Pela maneira que ele explora as paisagens e os lugares que os personagens frequentam, utilizando a mesma luz quente, representando a cidade como um espaço acolhedor. No caso, referente à história que ele está contando, acolhedor aos diversos personagens (e à diversidade) do filme. Entre restaurantes, cafés, feiras em bairros e praia, Chicago é uma cidade que trata bem os diversos personagens em cena.
Miranda Ruth, a tia de Cyd, é uma escritora e intelectual, que não vê sua sobrinha há muitos anos. E o estranhamento entre elas fica estabelecido logo no início, quando Miranda apresenta o quarto onde Cyd irá ficar, o quarto que teria sido de sua mãe, e menciona que é um ótimo lugar para a leitura. Logo, a sobrinha responde que não gosta de ler e pede a senha do wifi. A cena tem um detalhe engraçado, já que a senha da internet faz referência ao escritor Nathaniel Hawthorne, sobre quem Miranda fala de forma empolgada, enquanto sua sobrinha parece não se importar muito.
            Numa parcela do filme, o tom da conversa entre as duas é um pouco assim. Existe um esforço de conversa, mas o estranhamento toma um espaço maior entre os diálogos. Nesse sentido, gosto de como Stephen Cone apresenta isso através do enquadramento de ambas, como, por exemplo, na primeira refeição, com a câmera afastada e as duas no fundo do quadro. Na medida em que as duas vão se aproximando, isso se reflete na forma como elas são apresentadas no quadro, as duas juntas, conversando e interagindo.
            Outra questão é que a aproximação não se refere a interesses mútuos por alguma coisa. Mas sim, a relação entre as duas se desenvolve na medida em que se estabelece um respeito mútuo, principalmente por parte de Cyd, que como adolescente às vezes se coloca diante de questões da vida sem muito espaço para nuances. Nesse sentido, destaco também as atuações. Jessie Pinnick interpreta uma adolescente que aparentemente não está muito interessada em escutar, sendo assim, ela fala muito, fazendo inclusive várias perguntas para a tia, mas normalmente interrompe a fala de Miranda sem a deixar responder. Por outro lado, Miranda apresenta suas falas de forma mais tranquila, pensando ao elaborar suas respostas para a sobrinha, mas até uma parte do filme é pouco ouvida.
           Essa dinâmica vai se modificando ao longo do filme até o meio em que tem uma cena (para mim, a melhor do filme) na qual finalmente Cyd escuta sua tia e não a interrompe. É uma cena central, em que Cyd conhece vários amigos da tia, que vão em sua casa para ler textos, conversar, comer, compartilhar um amor pela troca literária e intelectual com outras pessoas. Ao final, Cyd se coloca de forma muito direta sobre o que ela entende da vida da tia e elas tem um diálogo muito honesto, que entendo como o momento de virada na relação das duas, quando efetivamente a ligação entre tia e sobrinha se concretiza.
Gosto como o filme representa essa adolescente um pouco intransigente, que enxerga o mundo de uma maneira muito simplista, ingênua por vezes. Sua viagem à Chicago é um momento importante de amadurecimento, de conhecer pessoas com vidas diferentes da sua, inclusive, sua própria tia. Também acho importante que o filme apresenta como a sobrinha impacta a vida pessoal da tia, fazendo-a repensar sobre algumas questões, e suas vidas serão melhores depois desse encontro. A ida de Cyd à Chicago foi importante para além de pensar em um possível futuro no qual estudaria em uma universidade da cidade. Mas sim, para desfazer algumas certezas do presente, em relação à sua sexualidade, relacionando-se com a personagem Katie (Malic White) no período em que esteve na cidade e também a sua história de família, desenvolvendo uma relação nova com sua tia.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Sobre um western queer

 

Há algum tempo tenho uma relação ambígua com o cineasta espanhol Pedro Almodóvar. O filme que me fez repensar a relação com as suas obras foi “Amantes Passageiros” (Los Amantes Pasajeros, 2013). Não gostei do filme, do tipo de humor, especificamente de alguns momentos construídos como cômicos e que entendo como ofensivos. É claro que podemos assistir algum filme de um cineasta favorito, não gostar, e continuar admirando-o. No meu caso, nem se trata de não admirar, o seu potencial como contador de histórias e criador de mundos é inquestionável, mas me refiro mais ao sentido de que determinado cineasta não fala mais tão diretamente a pessoa que você é no momento. Acredito que isso faz parte do desenvolvimento processual de quem se é. Alguns diretores e diretoras continuam com você por toda a vida, outros serão marcantes apenas em alguns momentos específicos, mesmo que você continue apreciando seu trabalho ao longo da vida.

Muitos dos filmes de Almodóvar que marcaram minha adolescência e o início da vida adulta eu não reassisti, e algum dia pretendo fazê-lo. Dos seus últimos filmes, “Dor e Glória” (Dolor y Gloria, 2019) é um dos meus preferidos. Tudo isso para dizer que assisti sua última produção, o curta Strange Way of Life e não gostei.

Fiquei pensando se era uma questão do estilo não me agradar ou por algumas coisas realmente não funcionaram para mim. Nesse sentido, inicialmente gostaria de descartar a questão do estilo. Almodóvar sabe filmar e transmitir emoções através das imagens, sempre gostei do modo como utiliza as cores, cria seus personagens, e tudo isso continua me encantando. Na verdade, o que realmente me incomodou no filme foi o roteiro e as atuações.

O curta Strange Way of Life é um western que retrata o reencontro de dois ex amantes após vinte e cinco anos separados, o pistoleiro Silva (Pedro Pascal) e o xerife e ex pistoleiro Jake (Ethan Hawke). O filme estreou no Festival de Cannes desse ano e concorreu a melhor curta no prêmio Queer Palm. Foi produzido pela Saint Laurent Productions e foi o segundo filme realizado originalmente em inglês pelo cineasta. Pouco nos é contado sobre os personagens, Silva e Jake no momento em que se conheceram viviam uma vida de foras-da-lei e anos depois Jake mudou sua vida e se tornou xerife. O personagem interpretado por Hawke apresenta aquela mudança como definidora de quem ele é e nada poderá comprometer aquela decisão, nem mesmo seu possível amor por Silva. No decorrer da história, essa firmeza em suas decisões é testada.

O filme começa ao som de “Estranha Forma de Vida”, na voz de Caetano Velloso, alguém que não é estranho às trilhas de Almodóvar. A imagem abre em um típico plano aberto de western em uma paisagem desértica, com o personagem de Pascal galopando até a cidade onde encontrará Jake. Quando chega à cidade, o ator espanhol Manu Ríos (que faz lip sync da música) está com um violão e cantando, recebendo o personagem na cidade. A música, além estabelecer uma atmosfera para o futuro encontro, já anuncia de uma certa forma ao que aqueles dois personagens estão fadados. Talvez seja uma das minhas cenas preferidas do curta.

Nas primeiras cenas em que Jake aparece, ficamos sabendo da morte de alguém e que existe um suspeito na cidade, um suspeito que na metade do curta é nomeado como o filho de Silva. No momento em que Jake e Silva se reencontram, o filme desenrola para nos mostrar que o amor/desejo que foi deixado de lado por anos ainda está presente, e que aparentemente Jake reprimiu essas memórias. O curta não me convenceu da relação, por talvez pela falta de química entre os atores. A dinâmica das cenas entre os dois, o modo como são enquadrados, me transmitiu uma certa artificialidade que não condiz com os sentimentos demostrados através dos diálogos. Se fosse destacar um elemento positivo, seria a construção do cenário, especialmente a casa do Jake (e posteriormente a casa do filho de Silva) e, nesse sentido, vale prestar atenção nos quadros pendurados nas paredes.

Quando Jake suspeita do real motivo do retorno de Silva, o de defender seu filho, eles se separam e cada um vai à procura do suspeito de matar a esposa do irmão do xerife. Nessa cena, acontece um flashback, de provavelmente vinte e cinco anos atrás, quando os dois ainda eram pistoleiros. Se você for na página do filme no IMDB encontrará a indicações de vários westerns a que Almodóvar teria feito referência e teria se inspirado, porém, a cena do flashback me fez pensar diretamente em uma famosa cena de “Rio Vermelho” (Red River, 1948), de Howard Hawks.  

No documentário The Celluloid Closet, baseado no estudo clássico de Vito Russo, sobre as representações queer no cinema estadunidense, da primeira metade do século XX, uma das cenas destacadas é a do filme de Hawks, entre os personagens interpretados por Montgomery Clift e John Ireland. Na cena, os dois personagens comparam suas armas, um pegando na arma do outro e depois atirando em uma lata de metal. Essa é a descrição literal da cena, e em 1948 nada poderia acontecer além disso, mas as leituras de subtexto são possíveis. Quando assisti o curta de Almodóvar, a cena do flashback me pareceu essa cena e o que ela poderia ter sido se não fosse de um filme de 1948, sob a censura do Código Hays

Além das atuações, o roteiro também foi um destaque negativo para mim. Primeiramente, eu não gostei de vários diálogos, principalmente da primeira cena entre os dois personagens, no início do curta. Mas o que realmente me incomodou foi o excesso de conflitos entre os personagens e o pouco tempo para desenvolvê-los. Admito que em Madres Paralelas, seu filme de 2021, também senti o mesmo tipo de incomodo e, nesse caso, estamos falando de um longa. O que me faz pensar que, no momento que resolver rever a filmografia de Almodóvar, vou prestar atenção no modo como ele constrói seus roteiros, mas, nesse momento, só posso falar sobre o que a minha memória permite.

Tudo que envolveu o filho de Silva no filme me pareceu deslocado com a história do curta. Somente o reencontro deles, todos os anos de separação, mais anos de sentimentos reprimidos, me parecia uma história e tanto para ser contada (e todos esses elementos estão ali). No fim, sabemos pouco sobre tudo isso. Inclusive, a própria cena do flashback, e quando ocorre, me pareceu estranha. Com a informação que temos a partir de um diálogo, o filho de Silva está na cidade de Jake, e por isso, não entendi aquele longo deslocamento a cavalo, com a necessidade de uma noite no deserto, para justificar a existência do flashback. Aliás, se você deseja tanto avisar seu filho que ele será preso, e sabe que está sendo seguido, por que parar e dormir para dar tempo àquele que te segue?

Eu fiquei querendo saber mais sobre os personagens, mas não por querer um longa-metragem, sim, por que se a história deles tivesse sido o foco, os trinta minutos seriam suficientes. Admito que fiquei decepcionada. Acredito que há muitas histórias que podem ser contadas sobre as vivências queer e marginais nos filmes de western, seja em filmes que se passam no século passado ou no contexto contemporâneo, já que o gênero ainda é utilizado para contar o mesmo tipo de histórias com os mesmos tipos de personagens, embora com algumas mudanças. Creio que as explorações do gênero por Kelly Reichardt em “O Atalho” (Meek’s Cutoff, 2010) e First Cow (2019), Chloe Zao em “Domando o Destino” (The Rider, 2017) e Jane Campeon, em “Ataque dos Cães” (The Power of the Dog, 2021), contribuíram recentemente para ressignificar um espaço narrativo muito dominado por histórias que reafirmam não só um ideal de virilidade heteronormativa, mas também colonial. O gênero se beneficiaria com explorações mais diversificadas, inclusive para trazer e incluir debates que já acontecem em discussões/estudos sobre o passado colonial estadunidense.


terça-feira, 23 de maio de 2023

Sobre algumas adaptações de James Cain para o cinema

No ano passado assisti alguns filmes do diretor alemão Christian Petzold. Um deles foi Jerichow, de 2008. Este filme é uma adaptação do romance The Postman Always Rings Twice, do autor estadunidense James Cain. Ele me fez pensar, dentre outras coisas, no contínuo interesse por esse livro, de 1934. O filme de Petzold faz parte de muitas adaptações, inclusive europeias. Apesar de algumas mudanças na história, os personagens envolvidos no triângulo amoroso e os principais temas da obra permanecem o mesmo.  A adaptação de 2008 faz escolhas interessantes para não responder a todas as perguntas, o que também acontece em outros filmes do diretor. Isso amplia, na minha percepção, a atmosfera de mistério, contribuindo para que o filme seja instigante, além de elementos visuais e do próprio elenco, que são excelentes. 

         A primeira adaptação do romance de Cain foi feita na Europa e somente em 1946 ganhou uma adaptação nos Estados Unidos. O livro de Cain, lançado em 1934, foi sucesso de público e logo teve seus direitos comprados por Hollywood, no entanto, seu conteúdo foi considerado excessivo para os padrões morais do Código de Produção, vigente desde 1934. Segundo Robert Sklar (1992), em seu livro City Boys, uma das primeiras ações de Joseph Breen, em 1934, como diretor da Production Code Administration (que controlava a aplicação do Código de Produção ou Código Hays), foi impedir possibilidades do romance ganhar uma adaptação para o cinema. A MGM adquiriu os direitos por 25 mil dólares e esperou 10 anos para realizar o filme.    
       A primeira adaptação do livro foi dirigida pelo francês Pierre Chenal, intitulada “Paixão Criminosa” (Ler Dernier Tournant, 1939). Quatro anos depois o livro ganhou outra adaptação, dirigida pelo italiano Luchino Visconti, intitulada “Obssessão” (Ossessione, 1943). Ambas as versões não foram autorizadas, segundo Robert Sklar (1992). Nos Estados Unidos, a primeira é a dirigida por Tay Garnett, em 1946, com o mesmo nome do livro. Em 1981 o livro ganhou outra adaptação nos Estados Unidos, dirigida por Bob Rafaelson, com Jack Nicholson e Jessica Lange nos papeis principais. Pesquisando sobre as adaptações descobri que existe também uma versão húngara, lançada em 1998, chamada Szenvedély, do diretor György Fehér.
           A versão de Garnett pela MGM foi precedida nos EUA por duas adaptações de outros livros de Cain, em diferentes estúdios. “Pacto Sinistro” (Double Indemnity, 1944) pela Paramount e Mildred Pierce (1945) pela Warner Bros. Assim como demorou dez anos para que a MGM filmasse o livro em função do Código de Produção, a Paramount demorou oito anos para filmar “Pacto Sinistro” pelos mesmos motivos, mesmo tendo os direitos desde 1935 (MAYER, 2013).    
         Em relação à “Pacto Sinistro”, James Cain seria o roteirista, porém, ele estava contratado por outro estúdio e não pode participar da produção. O escritor Raymond Chandler foi chamado e escreveu o filme juntamente com Wilder, que também o dirigiu (NAREMORE, 2008). Os dois romances têm elementos similares, como os temas explorados: traição, desejo, ganância, e o que os personagens estão dispostos a fazer para ter o que desejam. Nos dois casos, como uma boa história noir, esses desejos não se realizam. Iniciamos as duas histórias sabendo que tudo vai dar errado, mas a narrativa está mais interessada em nos mostrar como esses personagens chegaram a tal ponto, e não quem é o culpado de tal crime (pois esta resposta já sabemos).
           O filme “O Destino Bate sua Porta”, de 1946, roteirizado por Harry Ruskin e Niven Busch, conta a história de Frank Chambers (John Garfield) um andarilho que encontra um refúgio temporário em um bar de estrada, cujos donos são Nick Smith (Cecil Kellaway) e sua esposa Cora Smith (Lana Turner). Ao longo da história, Frank e Cora se apaixonam e planejam o assassinato de Nick. Comparado às outras duas adaptações de Hollywood mencionadas, considero esse o filme mais fraco. Na minha opinião, sua força principal reside nas atuações de Garfield e Turner e a química entre os dois.
Em 1945, o ator John Garfield, ainda contratado pela Warner, foi emprestado para a MGM para fazer dois filmes, o primeiro a adaptação do livro de Cain (SKLAR, 1992). Ele é um dos meus atores preferidos do período. Sua carreira no cinema começou na década de 1930 e terminou abruptamente com sua morte aos 39 anos, em 1952. Garfield ficou marcado por papéis em filmes de crime e noir, nos quais interpretava o cara durão, que provavelmente encontraria o pior dos destinos no final da história.  Ainda tenho várias lacunas para preencher de sua filmografia, mas gostaria de destacar duas das minhas atuações preferidas do ator, em “Corpo e Alma” (Body and Soul, 1947), dirigido por Robert Rossen, e “Força do Mal” (Force of Evil, 1948), dirigido por Abraham Polonsky.
Lana Turner é uma atriz que conheço pouco, mas sua versão de Cora Smith é marcante. O filme de Tay Garnett foi lançado no mesmo ano de outros filmes com femme fatales icônicas do cinema noir, como “Gilda”, com Rita Hayworth, “À Beira do Abismo”, com Lauren Bacall, e “O Tempo Não Apaga”, com Barbara Stanwyck. Em um vídeo do canal Be Kind Rewind, sobre a categoria Melhor Atriz no Oscar de 1947, ano em que Olivia de Havilland foi a vencedora, a autora do canal menciona o fato de que nenhuma dessas atuações foram nem indicadas ao Oscar, mesmo que possivelmente merecedoras, e que existia um certo preconceito com os filmes mencionados acima, sendo os melodramas mais considerados pela academia. E como ela pontua no vídeo, é preciso considerar o tipo de personagem que essas atrizes estavam interpretando nos filmes mencionados e quais estavam sendo celebrados. 
A comparação entre essas várias adaptações em culturas e contextos histórias diferentes é um tema para outro texto, porém, me parece instigante, ainda mais conectando a esse contínuo interesse por esse livro de 1934. Acho fascinantes os diferentes lugares que uma história pode alcançar, correspondendo a expectativas e anseios diversos, mas, antes de tudo, refletindo uma conexão que sentimos ao ler um bom livro e ver um bom filme. 


Referências:

Mayer, Geoff. Film Noir and Studio Production Practices In SPICER, Andrew; HANSON, Helen (edited by). A Companion to Film Noir. Sussex: Wiley Blackwell, 2013.

NAREMORE, James. More Than Night: Film Noir in its contexts. University of California Press: Berkeley, Los Angeles, Londres, 2008.

SKLAR, Robert. City Boys: Cagney, Bogart, Garfield. New Jersey: Princeton University Press, 1992


quinta-feira, 13 de abril de 2023

Livro: "The Lady From the Black Lagoon" de Mallory O'Meara


Minha ideia com o blog não é somente escrever sobre filmes em si, mas também sobre o que pode ter conexão com o universo cinematográfico. De tempos em tempos quero escrever sobre livros que li, sejam eles de cunho teórico, histórico ou até mesmo ficcional. Dito isso, resolvi escrever algumas palavras sobre um dos livros mais legais que li no ano passado, The Lady from the Black Lagoon: Hollywood Monsters and the Lost Legacy of Milicent Patrick, escrito por Mallory O’Meara. Eu li no original mas esse livro foi publicado no Brasil, em 2022, como "A Dama e a Criatura", pela editora DarkSide Books.

Publicado em 2019, o livro conta a história da artista Milicent Patrick e sua criação mais famosa, o design do monstro de “O Monstro da Lagoa Negra” (Creature From the Black Lagoon, 1954) dirigido por Jack Arnold. No entanto, esse legado lhe foi negado por muito tempo já que seu nome, além de não constar nos créditos, foi apagado da história do filme, mesmo sendo ela a criadora do design da criatura. O livro me atraiu por dois motivos. Primeiro, porque me interesso pela história de mulheres que trabalham/trabalharam na indústria cinematográfica, não somente diretoras ou atrizes, e também porque o filme de Arnold é um dos meus filmes preferidos e o meu preferido dentre os monstros da Universal.
O’Meara conta toda a história de Milicent Patrick, sua vida pessoal e sua trajetória profissional. Patrick foi uma das primeiras mulheres animadoras da Disney, trabalhou em longas como “Fantasia” (1940) e foi a primeira mulher a trabalhar em um departamento de efeitos especiais em maquiagem. No caso do filme de Arnold e especificamente sobre o monstro, Patrick foi a pessoa que fez o design e Chris Mueller foi o escultor. Segundo a autora, no período do filme não era comum artistas individuais de efeitos especiais serem mencionados nos créditos dos filmes, normalmente quem aparecia era o do coordenador do departamento de maquiagem. No entanto, o trabalho de Mueller foi reconhecido em textos sobre o filme, diferente de Patrick.
Gostei do livro de O’Meara por vários motivos. Ao escrever a biografia de Patrick a autora também discute sobre a importância de trazer a tona o trabalho de mulheres esquecidas ao longo da história de Hollywood e do cinema de forma geral.  Sua proposta de texto não é apenas a de contar a história da artista mas também seu processo de pesquisa e de como se relaciona pessoalmente com o tema e sua personagem principal. O estilo de O’Meara nem sempre funcionou para mim, mas isso é mais uma questão pessoal. A autora escreve sobre questões fundamentais, não somente quando pensamos na história do cinema, mas também em tantas vezes que histórias são relegadas ao silenciamento por motivos que podem se relacionar com misoginia, homofobia, racismo...
Para os que buscam exclusivamente um livro sobre o filme de Arnold, o livro de O'Meara não é (talvez) o mais indicado. No entanto, para qualquer fã do filme entendo como fundamental conhecer a história da artista que tornou "a criatura" possível da maneira que conhecemos hoje. Gosto do tom pessoal do livro e como simultaneamente conhecemos a artista e a autora do livro. Acredito que qualquer pessoa conectada intensamente com o cinema poderá se identificar com o modo como a autora fala sobre o filme e cinema de forma geral. 




segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Directed by John Ford (Peter Bogdanovich, 2006)

       Um dos livros que estou lendo atualmente é “O Cinema no Século”, uma coletânea do escritor brasileiro Paulo Emiílio Salles Gomes, lançada pela Companhia das Letras. Alguns destes textos são sobre o diretor estadunidense John Ford. Em um deles, de 1941, que analisa o filme Tobacco Road do mesmo ano, Salles Gomes, na página 95, faz uma consideração que me deixou pensativa sobre a minha própria experiência assistindo os filmes de Ford: 


A apresentação de Tobacco Road significou para nós o fortalecimento de uma probabilidade reconfortante – John Ford poderá nos enviar filmes mais ou menos bons, ou mesmo maus, mas de qualquer maneira cremos que será difícil que surja, com a responsabilidade de sua assinatura, um filme vulgar. Isso nos leva imediatamente a uma outra consideração – não é possível assistir uma só vez a um filme de John Ford.

Estou longe de completar a extensa filmografia de Ford, mas essa afirmação me parece fazer jus a tudo que assisti dele. E como todo excelente diretor, rever suas obras é fundamental. Não somente para melhor apreciar os elementos formais, mas também para compreender mais profunda e criticamente os temas, contextos e personagens, que o diretor explora em suas histórias. Semana passada tive a oportunidade de assistir o documentário Directed by John Ford, de Peter Bogdanovich, e senti a necessidade de escrever sobre os meus sentimentos conflitantes, não somente sobre o documentário, mas também sobre John Ford. Cada vez entendo como fundamental sermos críticos também com artistas e obras que admiramos, e entender que sentimentos diferentes sobre algo podem coincidir.  
        A versão original do documentário é de 1971, no entanto, assisti a versão revisada, lançada em 2006, com entrevistas adicionais de diretores contemporâneos falando sobre o impacto da obra de Ford. Para os interessados em história do cinema é um filme importante, como os que Martin Scorsese fez sobre cinema estadunidense e cinema italiano, e independente da sua opinião sobre a obra de Ford, a influência desse diretor, principalmente, no contexto dos EUA, é inegável.
Penso que a adição de entrevistas com diretores contemporâneos enriquece a discussão sobre os principais temas explorados por Ford, e também sobre o impacto no cinema do país, através de entrevistas com diretores como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Walter Hill e Clint Eastwood. As realizadas com atores que trabalharam com Ford, como John Wayne, James Stewart e Henry Fonda, se destacam por revelarem suas experiências na relação com o próprio diretor e como eram os sets de filmagem. Não assisti a versão de 1971, mas a que assisti traz um balanço interessante dos que conviveram com Ford, além dos que se inspiraram na sua obra posteriormente e ainda fazem filmes. O filme de Bogdanovich faz uma boa companhia a um filme lançado também em 1971, The American West of John Ford, dirigido por Denis Sanders (os entrevistados do período são basicamente os mesmos).
É possível que uma das partes mais conhecidas do filme seja quando Peter Bogdanovich entrevista o próprio Ford, com uma bela paisagem de deserto compondo o cenário, e o diretor não parece estar muito entusiasmado (para dizer o mínimo) em responder as perguntas. Em várias ocasiões Ford rebate com respostas monossilábicas, e talvez a reação inicial de quem está assistindo seja a risada, mas na realidade, imagino que nenhuma pessoa gostaria de estar na pele do Bogdanovich naquele momento. 
Apesar de ter gostado muito do documentário acho válido apontar algumas questões que me incomodaram ao longo do filme. Primeiramente, a falta de qualquer criticidade sobre a obra de Ford, principalmente de diretores contemporâneos entrevistados para a versão revisada, assim como do próprio diretor responsável pelo documentário. É por isso que gosto mais de documentários no formato do Bergman: a year in a life (Jane Magnusson, 2018), em que apresenta o diretor sueco como artista e também como uma pessoa repleta de contradições (e as duas partes caminhando juntas).
Em um ponto do documentário é apresentada a relação de John Ford com a história estadunidense, nomeando os inúmeros filmes que representaram momentos diferentes da história do país (alguns ainda não assisti). Nesse sentido, gostaria de destacar duas falas que me chamaram a atenção: a primeira é quando Clint Eastwood afirma que John Ford "não foi influenciado por uma geração do politicamente correto" e por isso teria espaço para abordar certos temas da maneira que quisesse. É possível que Eastwood estivesse se referindo à representação da colonização do Oeste como uma grande narrativa de pessoas brancas e os povos originários relegados a vilões dessa história. No entanto, essa fala soa “engraçada” se pensarmos na censura que marcou a Hollywood com o Código Hays (que durou de 1934 a 1968), período em que muitos diretores e diretoras tiveram seus trabalhados controlados/censurados.  
A outra fala foi a de Spielberg, que afirmou que John Ford foi um dos diretores estadunidenses mais patrióticos. Não sei exatamente o que ele quis dizer com isso: seria por Ford ter um interesse profundo pela história de seu país? Nesse sentido, nos cabe refletir sobre as narrativas apresentadas por Ford em seus filmes e a forma da apresentação da história dos EUA, especificamente sobre o período da formação nacional. A afirmação de Spielberg me parece um tanto problemática. E vale dizer que nenhuma dessas falas foi contestada ou foi apresentado algum tipo de contraponto.
Que John Ford apresentou ao longo de sua carreira um interesse profundo sobre o passado estadunidense, isso não há dúvida. É importante afirmar que esse interesse não se limita a filmes de faroeste (vale lembrar de filmes como “A Mocidade de Lincoln”, de 1939). No entanto, é válido (e necessário) questionar de que maneira Ford discute sobre esse passado, quem são os personagens e narrativas que considera relevantes. Entendo que pelo tamanho (de importância e quantidade) da obra do diretor seria fundamental tais questionamentos aparecerem, principalmente, em um documentário relançando em 2006. No contexto estadunidense, os debates que problematizaram o avanço e colonização do Oeste, apontando os elementos de genocídio das populações originárias, por exemplo, não era um debate novo em 2006. 
Desta forma, me parece que ainda uma boa parte de artistas/cineastas opta por uma romantização da violência do período em uma saga protagonizada por pessoas brancas com uma lógica de bons x maus, o que torna extremamente difícil debater a história de modo complexo. Sendo assim, é difícil não lembrar da afirmação do jornalista no final de “O Homem que Matou Facínora” (John Ford, 1962), que sempre me pareceu uma maneira do próprio Ford pensar sobre a sua obra, de mais de 100 filmes.   

“Este é o Oeste, senhor. Quando a lenda se torna fato, imprima a lenda”


Referências 


- texto "Tobacco Road" de Paulo Emilio Salles Gomes em "O Cinema no Século" (Companhia das Letras, 2015)


Outros links:

*vídeos que achei interessante compartilhar sobre John Ford e alguns temas em discussão (infelizmente alguns são em inglês sem legenda):

1939: Stagecoach - How John Ford saved the Western

A sutileza de John Ford

O Homem que Matou o Velho Oeste - uma discussão muito interessante sobre o filme "O Homem que Matou o Facínora".

Reel Injun (trailer) - documentário sobre a representação dos povos originários no cinema estadunidense / hollywoodiano. Propõe questões importantes para que possamos assistir filmes como os de John Ford de forma mais crítica. 

Directed By John Ford - mini documentário sobre o diretor feito pela TCM com afirmações um tanto romantizadas mas é interessante por contar um pouco sobre Ford e ter falas do próprio diretor sobre seus filmes. 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

"Dois Monges" (Dos monges, 1934)


 

Um dos filmes mais legais que assisti nos primeiros dias desse ano foi o longa de estreia do mexicano Juan Bastillo Oro, chamado “Dois Monges” (Dos Monges, 1934).  O diretor Martin Scorsese, ao falar sobre o filme e sua versão restaurada para a edição da Criterion, o destaca como uma das obras do chamado ‘Cinema Gótico Mexicano’, juntamente com El Fantasma del Convento (1934), dirigido por Fernando de Fuentes, e El Misterio del Rostro Palido (1935) também dirigido por Oro. Assim como, é notável a influência expressionista no filme, tema discutido em uma série que encontrei no Youtube sobre cinema mexicano. Nela, o pesquisador Genaro Saul Reyes discute o cinema de Oro e evidencia “Dois Monges” como um filme que se destaca pelo uso dos elementos visuais para contar a história.
Pelas primeiras cenas do filme é possível pensar que estamos diante de uma história com elementos sobrenaturais. Os monges de um mosteiro sombrio rezam contra o diabo e a possível possessão de um dos que moram lá. Aos poucos, o que acontece com o monge Javier (Carlos Villatoro) são aflições bastante terrenas, que nos serão reveladas através de dois flashbacks. Nesse contexto, em que os monges acreditam na possessão de um deles, o monge Juan (Víctor Urruchúa) chega no mosteiro para ajudar na cura de Javier. Quando se encontram, Javier tenta matá-lo. A partir desse acontecimento, o responsável pela congregação conversa com os dois para entender o que aconteceu e descobre que os motivos em nada se relacionam com o sobrenatural.
Além de a história ser instigante, dois elementos me chamaram atenção no filme de Oro. Primeiro, a questão visual e sua influência expressionista. Nesse quesito, é possível destacar não somente o trabalho da iluminação e o uso do claro e escuro, mas como a câmera explora os personagens no cenário, também, o uso de ângulos inclinados, nos revelando a perturbação do personagem e também da própria situação. “Dois Monges” é muito eficaz em nos transmitir a frieza da vida monástica, em contraste com a vida que Javier tinha antes de estar ali. Iluminação, cenário e figurino bem utilizados em suas funções dramáticas nas histórias de Javier e Juan.
Nesse ponto, vale destacar o segundo fator que destaco, a maneira como a narrativa é estruturada, com a utilização de dois flashbacks, nos quais os personagens (Javier e Juan), relatam suas versões da história. Não conheço a história do cinema mexicano, mas, no caso de Hollywood, o flashback só se tornaria um recurso narrativo comum a partir da década de 1940. A maneira como esse recurso é utilizado em “Dois Monges” me fez pensar em “Rashomon” (1950), de Akira Kurosawa, e o filme mexicano, como pontuado por Scorsese no vídeo já mencionado, foi lançado muitos anos antes.
A cena que antecede o primeiro flashback apresenta o líder da congregação interpelando Javier para entender suas motivações. Ao conhecermos a sua história - um pianista que não tem muito dinheiro, mora com a mãe e se apaixona por uma jovem mulher - somos conduzidos a crer que a vinda de Juan (na época amigo íntimo de Javier) é o prenúncio de algo ruim. Num sentido o é, mas não pelos motivos que o flashback nos leva a pensar. Na memória de Javier, Juan muitas vezes é um espectro que assombra sua possibilidade de felicidade, sempre vestindo roupas escuras em contraponto a seu amigo. Já no primeiro flashback esse binarismo é construído com eficácia. No entanto, ele é invertido quando Juan tem a oportunidade de relatar sua própria versão dos fatos. Após assistirmos as duas versões o que fica claro é a tragédia que marcou a vida dos dois homens, que se refugiaram na vida monástica após os acontecimentos relatados. Ambos vivem vidas austeras, dedicados às atividades do mosteiro e sem nenhum envolvimento emocional com ninguém. 


Referências 

- O vídeo mencionado de Martin Scorsese foi lançado no Brasil como um extra no box “Obras Primas do Terror: Horror Mexicano Vol. 2” da distribuidora Versátil Home Video;

- A discussão sobre o uso do flashback como recurso narrativo no cinema estadunidense dos anos 1940 foi debatido no livro Reinventing Hollywood: How 1940s Filmmakers Changed Movie Storytelling (lançado em 2017) de David Bordwell. O autor também relata em sua pesquisa que na década de 1930 era um recurso raramente utilizado e relegado a filmes B;

- o texto “Terror em Terra Quente: fragmentos da América Latina”, escrito por Carlos Alberto Carrilho, para um panorama sobre o terror na AL em países como México, Argentina e Brasil;

- Sobre Juan Bastillo Oro (episódios de uma série sobre história do cinema mexicano):

Parte 1;

Parte 2;

Parte 3;

Parte 4;



segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

"Torrente de Paixão" (Niagara, 1953)

 
    O cinema noir é uma paixão pessoal. No contexto de Hollywood das décadas de 1940 e 1950 são, em muitos casos, os filmes que extrapolaram os limites da censura do Código Hays. Eles apresentaram críticas à sociedade em questão e, ao mesmo tempo, encantaram visualmente e tem alguns dos personagens mais instigantes do período. Em sua maioria, os filmes são em preto e branco, mas existem casos de noir em cores, e esses dias finalmente assisti um desses títulos: “Torrente de Paixão” (Niagara, 1953) dirigido por Henry Hathaway, com Joseph Cotten, Marilyn Monroe e Jean Peters no elenco. Nenhum desses nomes é estranho ao noir, o que é só um dos elementos pelos quais esse filme chama a atenção.
É possível que quando se pense no noir do período em cores, o primeiro filme que venha à mente seja “Amar Foi Minha Ruína” (Leave Her to Heaven, 1945) dirigido por John Stahl. E existem motivos de sobra para isso. O filme tem no elenco nomes como Cornel Wilde, Vincent Price e a Gene Tierney interpretando uma das mais cruéis femme fatale do cinema. No panteão de vilões e vilãs do cinema noir, Gene Tierney em “Amar Foi Minha Ruína” e Richard Widmark em “Beijo da Morte” (Kiss of Death, 1947) estão lado a lado. 
No filme de Stahl, o diretor explora narrativamente as cores (e também as paisagens). E referente a isso pensei na afirmação de Martin Scorsese em “Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano”, quando lembra que os filmes em cor normalmente eram musicais ou histórias de época, dificilmente aparecendo em histórias contemporâneas. Ele afirmou: “A direção de John Stahl e a fotografia de Leon Shamroy deram vida a uma perturbadora visão super-realista. Era um paraíso perdido, com sua beleza maculada pela natureza perversa da heroína”. Entendo que essa afirmação pode ajudar a pensar sobre “Torrente de Paixões”, também em technicolor. No entanto, neste caso, entendo que não se trata apenas de uma personagem perversa, mas sim da maneira como a relação do casal formado por Monroe e Cotten se apresenta, além da natureza possessiva do sentimento de um marido por sua esposa. 
 O filme explora o esplendor da paisagem das cataratas de Niágara, as cores vibrantes, que também estão representadas pelos figurinos (destaque especialmente para os de Marilyn Monroe), contando essa história de obsessão e violência. Entendo que o filme relaciona a força da natureza, representada pela queda d’água das cataratas, com os sentimentos do protagonista pela mulher, e esse elemento está presente de alguma maneira em diálogos e é reforçado visualmente ao longo do filme. Ao mesmo tempo, o filme parece relacionar a beleza da paisagem (unida ao seu perigo) como uma expressão simbólica perfeita de como Rose mudou completamente a vida de George (a partir da visão dele).
A história possui quatro personagens principais que formam dois casais, Cotten e Monroe, interpretando George e Rose Loomis, e Max Showalter e Jean Peters, interpretando Ray e Polly Cutler. Os dois casais se encontram por acaso em uma pousada do lado canadense com vista para as cataratas, na qual George e Rose já estão hospedados e Ray e Polly chegam para um breve período. Logo de início é possível notar como são casais com relações muito diferentes.
       A primeira sequência do filme abre com uma imagem aérea das cataratas. Segundos depois a câmera focaliza a área próxima da queda d'água e vemos um homem caminhando, enquanto aproxima-se da queda d'água, o homem (que é o protagonista) é apresentado na imagem como minúsculo diante da paisagem e essa ideia é reforçada por um pensamento do personagem. A voz dele rompe com o som das cataratas que marcam esses primeiros segundos. Logo ele retorna para o quarto na pousada, onde sua esposa finge dormir. A cena corta para Ray e Polly cruzando a fronteira dos Estados Unidos para o Canadá em direção à pousada. Eles estão indo para lá motivados por uma proposta de emprego para Ray, mas em suas conversas falam sobre aproveitar o lugar e sua beleza natural. Ao chegar no local, a cabana reservada está sendo utilizada por George e Rose, que ainda não saíram da habitação. 
Em relação ao elenco fica difícil não destacar Joseph Cotten e Marilyn Monroe, ainda em início de carreira. Joseph Cotten teve uma incursão intensa em histórias sombrias, colocadas no cânone do noir ou como influências. Dentre essas é possível citar “Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, “A Sombra de Uma Dúvida” (Shadow of a Doubt, 1942), de Alfred Hitchcock, e o “O Terceiro Homem” (The Third Man, 1948), de Carol Reed. Dos filmes que assisti com ele, nunca vi uma versão de Cotten tão sombria e vulnerável ao mesmo tempo como em "Torrente de Paixão".
        No caso de Marilyn Monroe, ela estava em outro momento da carreira. Foi na década de 1950 que se tornou uma das maiores estrelas de Hollywood. Ela fez duas pequenas participações em grandes filmes do ano 1950 como “A Malvada” (All About Eve) e “O Segredo das Joias” (The Asphalt Jungle), e aos poucos foi ganhando protagonismo em vários filmes tornando-se um dos principais nomes do período em Hollywood. Normalmente ela é lembrada por filmes de comédia ou musical, como os que fez com Billy Wilder, “O Pecado Mora ao Lado” (The Seven Year Itch, 1955) e “Quanto Mais Quente Melhor” (Some Like It Hot, 1959), e “Os Homens Preferem as Loiras” (Gentleman Prefer Blondes, 1953), dirigido por Howard Hawks. No entanto, Monroe teve uma incursão por histórias mais sombrias que vale ser ressaltada.
Para Jake Hinkson, em texto escrito para a revista Noir City, antes de Monroe ser a estrela que conhecemos hoje, ela fez vários filmes de crime e drama nos quais a sua sexualidade era apresentada como fonte de perigo. Em filmes como o já mencionado de John Huston, “Só a Mulher Peca” (Clash by Night, 1952), de Fritz Lang, e “Almas Desesperadas” (Don’t Bother to Knock, 1952), de Roy Ward Baker, no qual era a protagonista. Segundo Hinkson, foi a atuação em “Almas Desesperadas” que fez a 20th Century Fox ficar impressionada com a atriz e os convenceu a chamá-la para fazer “Torrente de Paixão”. Ainda não assisti o filme de Lang nem o de Baker, mas é possível afirmar que no de Hathaway essa representação da sexualidade como fonte de perigo, comum na construção da personagem femme fatale, está presente. No entanto, me parece que essa maneira de representar Monroe está presente em outros filmes também.
Muito do que mencionei está presente na forma como o filme foi divulgado. Por isso vale a pena conferir um dos trailers que encontrei no YouTube (infelizmente sem legenda em português):


“Torrente de Paixões” explora temas e personagens comuns no noir, como a obsessão que leva ao crime (seja de forma efetivada ou a intenção de cometer um ato criminoso), a masculinidade frustrada e a femme fatale (para Jake Hinkson, Rose Loomis foi única femme fatale que Monroe interpretou ao longo da carreira). O filme tem como um dos produtores e roteiristas Charles Brackett, que trabalhou algumas vezes em filmes que Billy Wilder dirigiu, “Farrapo Humano” (The Lost Week-end, 1945) e “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard, 1950), e também escreveu junto com Wilder o roteiro de “Bola de Fogo” (Ball of Fire, 1941) de Hawks.
Destaco essa relação, pois um elemento em especial me fez pensar em outro filme de Wilder, “Pacto de Sangue” (Double Indemnity. 1944), do qual não teve participação. Já que desde o início ficamos sabendo que a esposa está arquitetando o assassinato do marido com o amante. No entanto, no caso do filme de Hathaway, não existe possível compensação financeira, o desejo dela é fugir da relação com outro homem. Como parte do plano, Rose faz o possível para mostrar para o outro casal que seu marido é violento (o que não é mentira, como o filme nos mostra).
          O personagem de Joseph Cotten também é comum ao noir. Veterano de guerra, frustrado com sua vida civil, e casado com uma bela mulher por quem se apaixonou. Lembrei do filme “Tensão” (Tension, 1949), dirigido por John Berry, no qual também apresenta um veterano de guerra casado com uma bela mulher (Audrey Totter) e que tem seus desejos de família tradicional frustrados no momento em que ela nunca aceita se conformar com esse papel. Em muitos filmes noir o desejo pela família tradicional é inatingível.
Em “Torrente de Paixões” esses elementos não são tão diretos como em “Tensão”, mas ao mostrar o personagem de Cotten tomado por ciúmes e infelicidade pelas ações de sua esposa, me parece que de alguma forma eles estão presentes. Como é comum nesses filmes, há um conflito entre o que o homem e a mulher desejam da relação e o que desejam para suas respectivas vidas, e normalmente são coisas bem distintas.  Existe uma leitura recorrente que essa personagem da femme fatale é aquela que destrói a vida do homem, mas acredito que é interessante discutir essa dinâmica pelo viés das escolhas desses personagens homens ao longo da história, não somente em tentar conformar a mulher a um certo papel, mas também ao escolher o ato da violência como uma alternativa quando sua expectativa não é correspondida.
        O filme noir é fascinante pelos personagens e situações complexas, contando histórias muito humanas. São filmes que dialogam perfeitamente com um mundo de expectativas frustradas que foram os anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, personagens em conflito com o desejo por viver o Sonho Americano (nesse período, uma casa, família, emprego e filhos seria considerado um exemplo desse sonho) e a vida mostrando que esse sonho é inalcançável, ou possivelmente uma grande mentira. Sempre importante lembrar que foram duas décadas de inúmeros filmes diferentes, com propostas e diretores variados, e nem todos se aplicam ao que acabei de afirmar.  


Referências: 

Marilyn Noir: The Dark Roots of Hollywood’s Blonde Bombshell - Jake Hinkson (Noir City, número 23, 2018)

Uma Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano – Martin Scorsese (edição lançada em 2004 pela Cosac&Naify, Trad: José Geraldo Couto)

Sobre a história e carreira da Marilyn Monroe recomendo os episódios 98, 99 e 100 do podcast (em inglês) You Must Remember This



terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Sobre "Uma Página de Loucura" (Teinosuke Kinugasa, 1926)


Decidi começar um blog para compartilhar minhas impressões sobre filmes que assisto e, se possível, proporcionar espaços de diálogo. Acredito ser interessante focar em filmes produzidos antes da década de 1960 (independente do país), pois é um período que muito me instiga. E o filme escolhido para abrir esse espaço, “Uma Página de Loucura” (1926) dirigido pelo japonês Teinosuke Kinugasa, está relacionado com as conversas das quais participei no podcast do grupo de pesquisa PhotoGraphein, que também integro, principalmente na sua segunda temporada, pautada no livro “Em Louvor das Sombras” de Junichiro Tanizaki. E além de gostar muito de cinema japonês, tenho uma vontade de conhecer mais sobre o período do cinema mudo (admito que minha lacuna é grande, independente do contexto). 
De forma geral, a estimativa de perdas das cópias de obras do cinema mudo é enorme, com porcentagem em torno de 70%/80% (Read; Meyer, 2000). E em relação ao cinema japonês, grande parte é considerada perdida, seja por conta de desastre natural ou da guerra. O filme de Kinugasa por muitos anos acreditou-se que também estaria perdido para a história, mas o próprio diretor encontrou uma cópia em 1971. Infelizmente os 34 filmes feitos anteriormente a esse são considerados perdidos. Anos depois, Kinugasa conquistou um Oscar e o Grand Prize de Cannes por “Portal do Inferno” (1953), assim como outros prêmios em Cannes e Locarno.
“Uma Página de Loucura” é baseado numa história do escritor japonês Yasunari Kawabata, vencedor do Nobel de literatura em 1968, e tem como um dos assistentes de câmera Eiji Tsuburaya, conhecido como um artista de efeitos especiais, responsável pelo clássico "Godzilla", de 1954. Como relata Chris Fujiwara, quando o filme foi lançado tinha 103 minutos de duração, no entanto, a versão que conhecemos atualmente tem um pouco mais de 70 minutos. Em seu texto, Fujiwara menciona fontes que atribuem essa diminuição a uma intervenção do próprio diretor.
Outro elemento importante é o fato do filme não ter intertítulos. Nesse período, no Japão muitos filmes eram acompanhados por uma espécie de narrador, conhecidos como Benshi, que eram parte integrante da experiência de ir ao cinema durante o período. Nesse sentido, a falta de qualquer elemento textual talvez torne a narrativa um pouco confusa de acompanhar, mas para uma obra tão fascinante visualmente, as imagens têm muito a dizer sobre o que está acontecendo com os personagens. As respostas podem não ser diretas, mas isso pouco importa.
A história acompanha um homem que está trabalhando no hospício onde sua mulher foi internada, ao longo do filme é revelada a sua intenção de tirá-la de lá. O pouco que sabemos da história dos dois é transmitida através de flashbacks, nos quais é apresentado o acontecimento de uma tragédia, a morte de um bebê, o que provavelmente levou a mulher à internação. O filme mescla realidade e imaginação, passado e presente. Essas informações não são esclarecidas, o que só contribui para a criação de uma atmosfera de confusão. As diferenciações são criadas também através da câmera, com o uso de enquadramentos não lineares e efeitos, como, por exemplo, quando apresenta o hospício pela visão da mulher internada e a imagem está distorcida.
O filme de Kinugasa é marcado por um ritmo rápido, frenético em algumas sequências, com uma montagem repleta de cortes rápidos. As cenas, quase todas filmadas dentro do hospício, são sombrias, com o uso de ângulos tortos e efeitos que marcam a desorientação no cotidiano daquele espaço. Em cenas feitas fora do hospício é possível notar um contraste na maneira como o diretor apresenta a vivência dentro e fora daquele lugar.
Acredito que é possível destacar dois elementos visuais que se repetem ao longo do filme, e que me parecem simbólicos do que os personagens estão vivendo, não só o protagonista. Primeiro, é constante nos enquadramentos de Kinugasa o aparecimento de barras de ferro ou suas sombras projetadas, demarcando o aprisionamento dos personagens, seja de forma direta, como é o caso dos pacientes do hospício, como de forma mais metafórica, numa alusão ao protagonista que deseja resgatar a esposa. Num dos momentos finais tem uma cena um tanto surrealista, na qual as barras parecem se fundir ao rosto do protagonista, com tudo o mais distorcido. A questão do aprisionamento do protagonista pode também se referir a outro ponto que acho relevante, que é a possibilidade dele também estar enlouquecendo ao longo do filme.


Nesse sentido, o outro ponto que destaco foi o apresentado na review do canal Dark Corner Reviews, quando chama a atenção para a utilização de formas circulares reiteradas ao longo da história. Está presente na dança de uma das pacientes do hospício, provavelmente uma antiga dançarina, mas também nas imagens de círculos que se repetem ao longo do filme. Para mim, a circularidade está relacionada ao tempo, um tempo que é sempre o mesmo no interior do hospital, e a noção de repetição também é marcada pela trilha sonora. É uma trilha que assombra, acompanhada das imagens de pessoas possivelmente abandonadas naquele lugar - importante dizer que a versão que assisti tem trilha composta pela The Alloy Orchestra, atualmente chamada de The Anvil Orchestra.


No tempo repetitivo do hospício, o filme dá indícios do protagonista estar perdendo a sanidade, em sequências que ele imagina ou lembra de determinadas situações, como um flashback ou um sonho, e a cena retorna a ele no tempo presente. Assim como,  em uma das últimas e mais impactantes sequências do filme, na qual ele distribui máscaras do teatro Noh para todos os pacientes e finalmente coloca uma em seu rosto. "Uma Página de Loucura" foi o primeiro filme que assisti do Kinugasa mas sem dúvida não será o último. Em muitas ocasiões quando se discute os períodos de vanguarda do cinema os olhares se voltam para a Europa, o que limita não só a possibilidade de conhecimento de outros filmes, como a maneira que pensamos a tal "História do Cinema". 


Referências

A Brief History of Benshi (Silent Film Narrators) – Jeffery Dym
https://aboutjapan.japansociety.org/a_brief_history_of_benshi
A Page of Madness – Michael Atkinson
https://silentfilm.org/a-page-of-madness/
A Page of Madness – Chris Fujiwara
https://ebertfest.com/films/page-madness
Alloy Orchestra Changes to The Anvil Orchestra, a Name Coined by Roger Ebert – Chaz Ebert
https://www.rogerebert.com/chazs-blog/alloy-orchestra-changes-to-the-anvil-orchestra-a-name-coined-by-roger-ebert
Restoration of Motion Picture Film – Paul Read e Mark-Paul Meyer
Podcast Japan House SP – Episódio: “Cinema japonês nas premiações: Oscar, Cannes, Veneza e outros festivais”
https://podcast.japanhousesp.com.br/podcast/cinema-japones-nas-premiacoes-oscar-cannes-veneza-e-outros-festivais

 




Princess Cyd (Stephen Cone, 2017)